O racismo e a história do colonialismo nos manuais de História em Portugal

Qual era o problema?

A necessidade deste projeto surgiu da lacuna existente na análise de como os debates nacionais e internacionais sobre a história e o ensino do colonialismo e do racismo permitem compreender em que medida persiste uma abordagem eurocêntrica na contemporaneidade, isto é, “um modelo de interpretação da realidade que consagra a ideia de progresso histórico e a superioridade política e ética da Europa”. Este foi o ponto de partida do projeto “'Raça' e África em Portugal: um estudo sobre manuais escolares de História” que decorreu no CES entre setembro de 2008 e fevereiro de 2012, coordenado por Marta Araújo. O projeto abordou a escola moderna como uma arena que reflete debates e lutas políticas mais amplas sobre história e identidade nacional e europeia e, consequentemente, abordou os manuais de História não só enquanto ferramentas pedagógicas fundamentais no processo de ensino-aprendizagem, mas também como objetos privilegiados para estudar tais debates e imaginários de pertença. Apesar dos manuais escolares serem objetos de diversos estudos sociológicos, esta investigação procurou ir além da análise das representações estereotipadas sobre o “outro”, para compreender como a produção de conhecimento histórico em Portugal continua a consagrar abordagens eurocêntricas que são perpetuadas apesar da inclusão de “outras vozes” (incluindo-as na “narrativa das descobertas”). O projeto centrou-se em dois exemplos paradigmáticos da “despolitização” e “naturalização” de certos processos históricos, designadamente: a escravização racial e as lutas de libertação nacional africanas. Esta análise foi contextualizada no âmbito de discussões e abordagens mais amplas a nível internacional sobre “raça” e racismo, poder e conhecimento, política e violência, cidadania e pertença.

O que fizemos?

O projeto centrou-se em três momentos: 1) a análise dos debates e recomendações políticas de organizações internacionais (por exemplo, UNESCO e Conselho da Europa), das orientações curriculares e políticas educativas nacionais e dos manuais escolares de história mais vendidos em Portugal, em vigor entre 2008/09 e 2013/14, para o 3º Ciclo do Ensino Básico (alunos de 12 a 15 anos); 2) entrevistas qualitativas e discussões focais com 60 participantes envolvidos quer na elaboração e consumo dos manuais escolares, quer na produção e crítica das narrativas históricas, entre os quais decisores políticos, historiadores, editores, professores, estudantes, associações da sociedade civil, ativistas e jornalistas; 3) oficinas participativas para discussão dos resultados da investigação. A análise procurou ir além do estado da arte de três formas: a) ao colocar como fulcral a necessidade de se abordar a disseminação de conhecimento histórico como refletindo debates e divergências no âmbito da própria produção académica; b) ao relacionar os debates sobre a história com discussões políticas mais amplas sobre a chamada “vocação histórica para a interculturalidade” dos portugueses; b) ao problematizar como a noção de “raça” permeia as narrativas sobre a identidade portuguesa, construindo o pressuposto de homogeneidade nacional e legitimando abordagens “despolitizadoras” do (anti-)colonialismo e (anti-)racismo.
O projeto destacou, entre os seus resultados, que o eurocentrismo é construído e consolidado como i) uma narrativa linear que coloca o “outro” num tempo diferente (i.e., anterior) do presente europeu; ii) pela narrativa do estado nacional (democrático) como paradigma hegemónico da organização política, e iii) através da equação entre racismo e determinados contextos espácio-temporais (por exemplo, o novo imperialismo do séc. XIX, o fascismo italiano e o nazismo alemão), isentando o papel do colonialismo português e espanhol na emergência e consolidação das ideias de “pureza de sangue” e “raça”. Estas premissas permeiam não só os manuais estudados como muitos debates públicos sobre a história, sendo cruciais quer para naturalizar a ausência da História de África para além do “contacto com os europeus”, quer para invisibilizar a violência do poder colonial, recorrentemente tratada como “expansão” e reduzida a “descobertas” e “contactos entre povos”. Além da crítica que o projeto promoveu sobre as limitações de uma abordagem positivista assente na “correção” de imagens estereotipadas, procurou demonstrar que o processo de inclusão de “outras” histórias não pode ser reduzido ao direito de representação, devendo ajudar a repensar a história e identidade nacional.
O projeto promoveu várias atividades de extensão que procuraram envolver professores/as, estudantes, artistas e representantes da sociedade civil, fomentando o debate em torno da história para além do “estudo científico do passado”. Foram realizadas sessões (no âmbito das atividades do programa de extensão “CES vai à Escola”), bem como participação das coordenadoras e membros da equipa em diversos espaços de debate e formação cívica, como por exemplo: Semana da Ciência e Tecnologia 2010; Formação Anual da Associação SOS Racismo e Cursos de Formação Avançada no CES.

O que aconteceu?

O projeto foi concluído em 2012, sendo alvo de diversas notícias nacionais e internacionais, onde se expressaram tanto os resultados como ações futuras necessárias. A equipa enviou sugestões para trabalhar os conteúdos dos manuais de história ao Ministério da Educação, através de uma brochura que produziu para o efeito. Porém, foram necessários quase 5 anos para o assunto ser debatido ao nível da esfera da governação nacional - e mesmo então não houve uma posição governativa inequívoca sobre o tema. Não obstante, o projeto teve impacto noutras esferas sociais, nomeadamente junto de diversas organizações de afrodescendentes e coletivos antirracistas – que colocaram a demanda pela revisão do ensino da História em Portugal numa Carta Aberta às Nações Unidas em 2016. A própria ausência de impacto governativo ajudou a colocar em evidência a inércia da estrutura de decisão sobre os currículos de história lecionados, onde as responsabilidades sobre os mesmos apareceram como difusas, emergindo um vazio governativo. Se a Associação de Professores de História expressou serem da responsabilidade dos governantes essas alterações, o Ministério permaneceu, à data, silencioso sobre o tema. Na esfera da governação apenas a ex-ministra da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues, expressou em entrevista ao Diário de Notícias, que a revisão não deve ser feita pelos governantes, mas por quem ensina. Mais recentemente, em 2018, a Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI) emitiu um relatório onde aconselha o governo português a rever os manuais escolares de História no sentido de que estes englobem “o papel que Portugal desempenhou no desenvolvimento e”, mais tarde, “abolição da escravatura, assim como a discriminação e violência cometidas contra os povos indígenas nas ex-colónias”.
 


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