Respostas públicas e privadas à falta de pagamento dos serviços de abastecimento de água
Qual era o problema?
Acompanhando tendências internacionais, Portugal tem vindo, desde o início dos anos 1990, a proceder à mercantilização do setor da água. Esta progressiva mercantilização traduz-se na adoção de uma lógica de mercado no setor com o objetivo de, por um lado, recuperar os custos associados ao serviço através da cobrança ao consumidor final e, por outro lado, tornar o setor economicamente atrativo para investidores privados. No âmbito deste processo foi criada uma Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Resíduos (ERSAR) que visa regular e supervisionar o setor de abastecimento público de água às populações, para além dos de saneamento das águas residuais e dos resíduos sólidos urbanos. Em 2011, várias situações de corte de abastecimento de água para consumo doméstico foram mediaticamente difundidas como impacto direto da crise económica e dos programas de ajustamento orçamental celebrados com a Troika. Por um lado, os agregados familiares não tinham rendimentos para pagar as contas da água e, por outro lado, a aceleração do processo de mercantilização ditado pela Troika fez aumentar os preços da água. Apesar das notícias difundidas, não houve lugar a grande contestação populacional nem à denúncia de violação do Direito Humano à Água. Tornava-se assim indispensável a realização de um mapeamento do impacto da crise económica no acesso à água para consumo doméstico e das respostas das entidades gestoras públicas e privadas perante o incumprimento de pagamento dos serviços, bem como de um estudo sobre as dinâmicas e processos subjacentes que explicassem o silêncio generalizado sobre esta situação.
O que fizemos?
O projeto “PPÁgua – Respostas públicas e privadas à falta de pagamento dos serviços de abastecimento de água: o caso português”, coordenado por Paula Duarte Lopes, permitiu a caraterização geral do setor de abastecimento de água “em baixa” em Portugal em termos do impacto da crise económica sobre o abastecimento público das populações, com uma componente comparativa entre entidades públicas e privadas.
Numa primeira fase, o projeto incidiu sobre todas as entidades gestoras de água “em baixa” em Portugal (287 em 2014). Recolheram-se os estatutos disponíveis destas entidades (272) e fez-se uma análise das regras aplicáveis a casos de não pagamento e às condições necessárias para usufruir de tarifas especiais (social, família numerosa, outras), bem como das regras relativas à recuperação de custos adotadas por essas mesmas entidades (quando existentes). Enviou-se um pequeno inquérito a todas as entidades gestoras de água para obter dados relativos ao impacto da crise, pedindo que, da sua experiência, nos informassem da perceção que tinham relativamente ao aumento, manutenção ou diminuição do número de avisos de corte por falta de pagamento, e de cortes efetivos (exclusivamente a agregados familiares) entre 2010 e 2014. [A constatação prévia da inexistência destes dados sistematizados implicou trabalhar com perceções, permitindo apenas a identificação de tendências.]
Na segunda fase, identificaram-se entidades gestoras representativas das diferentes tipologias existentes (serviços municipais e municipalizados, empresas municipais, consórcios multimunicipais e intermunicipais, empresas/consórcios de capital misto, empresa pública estatal e concessões privadas), tendo em conta a sua localização geográfica (interior/litoral), e respetiva caraterização social, económica e política (maior/menor incidência de desemprego, maior/menor concentração de pobreza, urbana/rural, gestão municipal de diferentes partidos políticos). Nesta fase, as entidades gestoras de água do distrito de Faro e das regiões autónomas dos Açores e da Madeira não foram incluídas; as primeiras devido aos drásticos desequilíbrios sazonais da procura de água existentes e as segundas devido a limites orçamentais do projeto. Realizaram-se 43 entrevistas presenciais com funcionários/as responsáveis pela gestão destas entidades e/ou pela gestão do serviço de cobrança e/ou cortes de cada entidade gestora de água.
Como recomendação, o projeto lançou o aviso da necessidade de assegurar o princípio da universalidade do acesso à água, e que o Estado garanta a promoção, proteção e garantia do acesso universal, como Direito Humano, por parte dos utilizadores domésticos. As recomendações políticas foram enviadas para todas as entidades gestoras, bem como para a ERSAR, as associações existentes no setor e as instituições governamentais relevantes.
O que aconteceu?
O projeto determinou que, apesar da crise económica, os Municípios tendiam a assegurar o abastecimento de água, mesmo em situações de incumprimento de pagamentos e mesmo no caso de a entidade gestora ser privada, demonstrando que em Portugal as responsabilidades sociais ainda se priorizam frente às financeiras ao nível local. Apesar de tudo, esta situação não é sustentável e contraria alguns princípios de gestão da despesa pública. Acresce ainda que o Direito Humano à Água é da exclusiva responsabilidade do Estado que, neste caso, por um lado, se escudou na existência de tarifas especiais para estas situações e, por outro lado, decidiu não ser proativo, argumentando a não existência de queixas de violação desse Direito Humano.
O projeto recomendou, assim, ao governo que se assegure o princípio da universidade do acesso à água através da adoção de garantias legais que impeçam a interrupção ou recusa do abastecimento de água a utilizadores domésticos por falta de recursos financeiros. Alertando para a necessidade de se criarem instrumentos e mecanismos resilientes (eficazes e flexíveis) dirigidos a todas as entidades gestoras de água – públicas e privadas – para que estas tenham as condições necessárias para garantir a universalidade do acesso à água, independentemente da situação económica de cada agregado familiar.
Esta temática foi abordada, alguns anos depois, pela Lei 44/2017 de 19 de junho, que estabelece o princípio da não privatização do setor da água, mas que em nada altera a lógica mercantilista subjacente a este tipo de situações em momentos de exceção.