Escola de Inverno do Programa de Investigação Epistemologias do Sul

Ecologias Feministas de Saberes

21 a 24 de Janeiro de 2019

Sala 1 e Sala 2, CES | Alta

Resumos das Sessões

21 de Janeiro de 2019 – Corpos e Linhas Abissais

1. Seminário "Lendo e escrevendo se atravessam abissalidades – Reinscrições ecológicas dos corpos a partir da literatura de mulheres africanas"
Catarina Martins
Propõe-se a leitura coletiva de algumas obras da literatura de mulheres africanas para interrogar questões feministas, a partir de diferentes lugares de África. Respondemos ao desafio de Boaventura de Sousa Santos, que critica a razão ocidental moderna como uma razão abissal, a qual produz como inexistente o mundo colonizado e invalida os saberes destas geografias, no sentido da abertura a epistemologias do Sul, que promovam a justiça social e cognitiva através de uma ecologia de saberes. Queremos alargar os conceitos de Santos a dimensões feministas que aqueles não compreendem, bem como desvendar a criação de abissalidades e opressões por parte dos feminismos.
No centro da reflexão estará o conceito de corpo enquanto um dos elementos da dicotomia central do pensamento da modernidade ocidental – a dicotomia mente / corpo – e se apresenta, invariavelmente, como sede da produção da diferença que subalterniza, mas também como o lugar político da resistência. Dar-se-á destaque a práticas de leitura e de escrita como fundamentais para a (des)codificação do simbólico que sustenta as práticas sociais e permite a transformação das relações de poder.

2. Seminário "Mulheres negras e ciência: Como descolonizar paradigmas e vivências e resgatar vozes, corpos abissais e lugares historicamente subalternizados"
Joacine Moreira
O corpo negro feminino é o espaço onde se circunscrevem as maiores violências e onde o mapa colonial foi melhor distribuído, espelhado-se hoje no racismo e xenofobia e suas práticas discursivas violentas. Na reposição da justiça histórica e epistemológica, impõe-se o reconhecimento de que as mulheres negras, feitas “o Outro do Outro”, foram transformadas em tudo aquilo que o sujeito colonizador não quis ser. A outrificação, a desumanização e a objectificação dos seus corpos são resultados de práticas discursivas e métodos de diminuição como forma a torná-los menores e não reconhecidos.
São necessárias estratégias de reposição da justiça histórica e estas poderão tomar forma com a produção do conhecimento científico que transgride a norma colonial promovendo justamente 1) a mudança de paradigma; 2) e a reconceptualização; 3) a criação de novas práticas discursivas. Tendo em conta que o epistemicídio foi legitimado através da invisibilização das experiências e corpos dos sujeitos negros, o desafio contemporâneo passa por descobrir como torná-los visíveis, portanto audíveis, num mundo de sombras do passado (presente) colonial.

3. Oficina Corpos-aprendizagens: Resistências além das fronteiras
Agnes Arruda, Luísa Valle e Vannessa Carneiro
Partimos da compreensão de que nossos corpos estão cheios de sensibilidades, pulsam a vida e guardam diversas memórias e narrativas. Dessa forma, nossa oficina propõe um diálogo sobre corpos e representações, por meio de mapeamento sensório-territorial, dividida em três momentos-chave: 1. Identificação dos nossos limites e zonas de contatos; 2. Confrontação das zonas de tensões; e 3. Desafios para ressignificações e resistências. O objetivo primeiro é o despertar cognitivo do que é pré-concebido e recebido como limites dos nossos corpos. Para isso utilizaremos sons e textos, em um contexto dinâmico e coletivo, capaz de nos colocar sensíveis às percepções. Seguiremos para a concretude das tensões com o confronto daquilo que pensamos ser, representando as imagens que temos dos nossos próprios corpos com sucatas e materiais diversos. Por último, abriremos espaço para os desafios das ressignificações desses corpos, a partir de outros olhares para além do héteropatriarcal-capitalista-colonial. Serão então trazidos recursos como espelhos, fotografias e imagens que possibilitem esse processo. Procuraremos, assim, abrir caminhos para as resistências e ações transgressoras - e/ou fortalecer as já existentes - daquilo que é separado, antagônica e hierarquicamente, pelas linhas abissais contemporâneas.

22 de Janeiro de 2019 – Metodologias feministas e artesanais das práticas

1. Seminário "Produção de conhecimentos imersos em práticas transformadoras"
José Manuel Mendes e Teresa Cunha
Numa época em que a análise social e cultural se torna aparente através de conceitos marcados através de prefixos como, pós-colonial, pós-social, pós-confiança, pós-política, entre outros, que derivam de uma noção de fracasso ou impotência do conhecimento e epistemologias centrados no Ocidente, é necessário buscar paradigmas alternativos que possam fomentar uma verdadeira transformação social, justiça e emancipação. Muitas intelectuais e activistas feministas há muito que têm vindo a criticar a ideia de um conhecimento abstracto, que não vem nem está em nenhum lugar nem tempo propondo, ao invés, que todo o conhecimento é situado e deve ser modesto (Haraway, 1988; 1997).
A questão principal é, pois, como estudar grupos oprimidos com base na igualdade e no respeito? A nossa visão epistemológica e metodológica é guiada por uma produção de conhecimento mais coletiva e participada que requer um esforço analítico mais profundo e complexo e, neste sentido, se pode ser configurada num artesania de práticas que busca a produção de saberes situados, conectados a contextos específicos e imersos em práticas transformadoras. A linguagem privilegiada destas metodologias é a narrativa. Contar estórias - que é compatível com expressões de escrita e oralidade, teatro, música, dança e artes visuais - cria um sentido imediato e concreto de co-presença. É uma co-presença que não pode ser alcançada pela linguagem conceptual  (técnica, filosófica ou científica). A co-presença precede o significado. Co-produzir conhecimento é sempre aprender com a partir de epistemologias e metodologias não extractivistas e que se baseiam em relações de sujeita/o-sujeita/o e não sujeita/o-objecto.

2. Oficina "Teatro da vida de patas para o ar"
José Miguel Pires e Sandra Silvestre
O teatro dx oprimidx é um instrumento e uma linguagem para dizer a vida, experimentar o mundo e reunir forças para levar por diante as transformações que queremos protagonizar. Nesta oficina vamo-nos apropriar e reinterpretar técnicas desenvolvidas por Augusto Boal para pensar, reflectir, sentir, fazer tanto opressões como resistências a elas. Queremos ir mais longe ainda. Em colectivo vamos imaginar e criar liberdade, emancipação, autonomia, solidariedade, felicidade, voz, grito, e tudo o que nos pode fazer andar por outros caminhos. Outros caminhos para andar de patas para o ar se for preciso.

23 de Janeiro de 2019 – Democracia e dignidade humana e cosmopolitismo subalterno insurgente

1. Seminário "Corpos, i/mobilidade(s), resistências: para uma leitura pós-colonial e feminista da relação entre espaço, corpo e história"
Gaia Giuliani
O meu seminário propõe uma interpretação das mobilidades livres e forçadas (aquelas que atravessam as fronteiras e também as linhas sociais, raciais, sexuais e de classe). O contexto é o da história da opressão capitalista: meu objetivo é o de ler as migrações, e as mobilidades em geral, como dispositivos das relações de poder espacializadas e, ao mesmo tempo, como formas de rebelião. O seminário constrói uma ligação entre metrópole e periferias coloniais ao fim de habilitar uma leitura global dos processos de exploração assim como das resistências e das formas de subjetivação relacionando-as com o conceito de cosmopolitismo subalterno insurgente. Analiso como o corpo está construído dentro do sistema simbólico que o posiciona de acordo com as hierarquias nacionais, imperiais e pós-coloniais. Focando numa perspetiva interseccional, o objetivo final é valorizar, em oposição à iconografia do sujeito feminizado e racializado imposta pelo discurso hegemónico, as formas de resistência que constituem espaços individuais e coletivos revolucionários.

2. Seminário "Homegirls: violência, política e micro-resistências em modo de cosmopolitismo subalterno"
Sílvia Roque
Apesar de cerca de 20 a 40% dos membros de gangs em El Salvador serem do sexo feminino, a participação das mulheres nestes grupos tem sido marginalizada e menorizada. Este (aparente) paradoxo no interesse votado às experiências das mulheres que integram gangs está relacionado com a questão da diferença de legitimidade associada à ação e objetivos dos diferentes grupos. Quando as mulheres se envolvem em grupos violentos em contextos de guerra, seja em exércitos, seja em grupos de guerrilha, é muitas vezes com base num pacifismo inerente que são retratadas nas práticas e discursos políticos e mediáticos. São remetidas para papéis de apoio (secundarizados) ou de cuidadoras e a sua participação é quase sempre entendida como um prolongamento das suas funções tradicionais, mesmo quando elevadas ao estatuto de heroínas primordiais, sustentáculos das lutas e projectos nacionalistas ou revolucionários.
Quando a violência das mulheres é exercida fora de um enquadramento ideológico justificativo, ela é também abordada do ponto de vista da excecionalidade, em dois sentidos diferentes .Em primeiro lugar, no sentido de serem invisibilizadas: são tidas como meras  acompanhantes”, membros secundários e apoiantes, mas não membros centrais e activos dos gangs, assim como as fundações sexuadas da violência dos gangs (feminilidades, masculinidades e a relação entre estas) também não parecem ser relevantes. Em segundo lugar, no sentido de serem hiper-visibilizadas como exemplos de um “desvio” de género, sendo a violência por elas praticada vista como irracional ou anormal. Tornam-se parte de uma imagética que as revela como expressões de feminilidades perversas: são “bad girls” que se afastam dos papéis pacíficos esperados, desprovidas de “feminilidade”, cuja ligação aos gangs se explica sobretudo por via da sexualidade e da hiperssexualização dos seus atos; ou são ‘monstros’, hiper-agentes, ainda mais assustadoras e vorazes do que os homens no seu desempenho da violência. Em suma, retira-se-lhes a feminilidade, a normalidade e a humanidade.
Nesse sentido, alguns estudos e ativismos feministas têm um papel contraproducente ao reforçar essa associação, recusando olhar os fragmentos feministas que emergem da análise dos relatos destas jovens – ainda que ambíguos, incompletos ou incoerentes. São esses fragmentos que pretendo analisar, centrando-me em duas dimensões: a sua agência política e as suas mirco-resistências enquanto sobreviventes de um ciclo intenso se violência. 

3. Oficina "Pelas ruas da Coimbra feminista e manifestos pós-coloniais"
Agnes Arruda, Begoña Dorronsoro, Luísa Valle e Vannessa Carneiro
Chamar a Coimbra de “a cidade do conhecimento” - no singular, repare-se - ou até mesmo “berço de reis”, coloca-nos perante a um imaginário de uma cidade profundamente heteronormativa, colonial e patriarcal. Para confirmar esse senso comum de uma épica conservadora e sexista temos, entre outros elementos, uma Praxe Acadêmica que reproduz anualmente rituais de autoritarismo inquestionado, hierarquia, dominação, e violência. Na contramão dessa Coimbra de sombras, muitos grupos insurgentes ocupam espaços pelas ruas da cidade e marcam territórios de resistência. É o caso dos coletivos feministas, com seus graffitis e pichações com palavras de ordem, frases de reflexão e outras imagens que remetem à luta das mulheres por sua emancipação, dignidade e consequente liberdade. Propomos então, com esta oficina, (re)conhecer, pelas suas ruas, os manifestos dessa Coimbra feminista e pós-colonial, que também precisa ser vista e valorizada. Faremos uma caminhada por diferentes lugares, informais e formais, onde coletivos  se (re)apropriam de um espaço que é público e, sendo assim, de todxs, discutindo e desafiando os mitos de uma Coimbra subjugada ao fado colonial e machista. Vamos encontrar e conversar pelo caminho com protagonistas dessa Coimbra feminista, bem como visitar diferentes espaços de coletivos e resistência, como associações e repúblicas feministas, onde diferentes gerações continuam, todos os dias, a desconstruir tanto o sonho do império quanto o fardo do homem branco como medida de todas as coisas. Ao final, convidaremos xs participantes a ocuparem também a cidade e a realizarem uma intervenção artística urbana.

24 de Janeiro de 2019 – Economias e a sociologia das emergências

1. Seminário "Feminismos do Sul, mulheres periféricas e o doméstico como político: aprendendo com as mulheres e a plasticidade de suas práticas económicas"
Luciane Lucas dos Santos
Este seminário parte da necessidade de um alargamento epistemológico do conceito de economia, assumindo como parte de seu léxico práticas usualmente consideradas como menos relevantes por não estarem subsumidas à lógica do mercado capitalista. Para debater este ponto, recorro a uma reflexão sobre as potencialidades e os limites do campo conhecido hoje como Economia Feminista, nele identificando os riscos de ausências teóricas, imprecisões metodológicas e invisibilidade de corpos, já que assente na racionalidade moderno-ocidental. Neste seminário, procuro também retomar o debate sobre o doméstico, discutindo: 1. a suposta universalidade da cisão entre este domínio e o económico; 2. a potência política do doméstico a partir da articulação de mulheres do Sul para reincrustar a Economia; 3. a criação de outras lógicas de pertença e de construção da identidade a partir de arranjos económicos de mulheres. Em termos teóricos, este seminário se fundamenta nos conceitos de sociologia das ausências e das emergências de Boaventura de Sousa Santos, no par incrustação/desincrustação na teoria de Karl Polanyi e no conceito de diferença em Avtar Brah.

2. Seminário "A crítica feminista das Epistemologias do Sul e a invenção do trabalho reprodutivo das mulheres"
Teresa Cunha
Uma crítica feminista das Epistemologias do Sul permite distinguir com maior clareza que a racionalidade abissal inscrita no penso moderno logocêntrico é também androcêntrico e antropocêntrico. Por outras palavras, a separação abissal está também reflectida no sexismo, entendido enquanto sistema de disjunção e hierarquização com base na oposição entre feminino e masculino reduzidos a atributos biossociais criados e alimentados por si.
Os trabalhos de muitas feministas têm vindo a mostrar como as estratégias das mulheres [são cooptadas em] proveito dos homens (Whathouse; Vijfhuizen, 2001) ou como alerta Silvia Federici (2004) inventou-se a mulher como ‘dona de casa’, responsável pelo cuidado e pela infra-estruturação da vida e das condições necessárias para a produção e a consequente acumulação do capital. A transformação do trabalho numa mercadoria, que pode ser comprada em vendida teve, como consequência, uma mudança paradigmática sobre o conceito de trabalho e de economia. Se o trabalho foi entendido durante muito tempo como o outro nome das actividades humanas (Polany, 1975 [1944]: 72) com a revolução industrial moderna passa a ser as atividades que podem ter valor de troca no mercado capitalista. Sendo assim, os trabalhos das mulheres, realizados fora da esfera industrial e do comércio, ou seja, no espaço doméstico ou da comunidade, uma vez que não assalariados – não têm valor de troca no mercado - deixam de ser trabalho, ou, quando muito, são considerados trabalho reprodutivo. Como afirma Amaia Orozco (2014) a promoção de uma ética reacionária do cuidado está na base do contrato social moderno que continua a manter a obsessão pela conquista dos conhecimentos e dos corpos das mulheres (Federici, 2004) reorganizando e reapropriando os seus modos de vida, as suas atividades, enfim, os seus trabalhos. 

3. Oficina "Outras economias são possíveis: o nosso mercado solidário"
José Miguel Pires e Sandra Silvestre
O mercado não é um monstro que precisamos de derrotar a todo o custo. O monstro que precisamos de vencer é a ideia de um só mercado onde tudo, mesmo tudo, pode ser comprado e vendido. Nesta oficina queremos experimentar outras formas de pensar e praticar a economia através da troca, das reciprocidades, das alianças, desfazendo as divisões e as hierarquias entre quem produz e quem consome. Com o recurso a uma moeda social cujos princípios, valor, modos de funcionamento será colectivamente decidida nas assembleias comunitárias de final de dia, propomo-nos levar a cabo um mercado solidário onde a abundância e a sobriedade sejam possibilidade de organizar o mundo e a vida. Esta oficina, apesar de acontecer no último dia da nossa Escola de Inverno ‘Ecologias Feministas de Saberes’, é uma experiência transversal e comunitária que nos incita à participação constante e ao cuidado que tem no seu centro a vida em todas as suas formas e manifestações.