Teses Defendidas

Reciprocidade e troca mercantil: contributo para uma análise institucional do microcrédito

Filipa Maria Gouvêa de Almeida

Data de Defesa
7 de Janeiro de 2019
Programa de Doutoramento
Governação, Conhecimento e Inovação
Orientação
José Manuel Mendes e José Reis
Resumo
O microcrédito na sua versão informal tem uma história de séculos, sobretudo nos países menos desenvolvidos onde, até hoje, constitui uma das poucas oportunidades de as populações mais pobres poderem aumentar os seus rendimentos. Foi sobretudo na sua versão formal popularizada por M. Yunus a partir dos anos 70 do séc. XX que o microcrédito ganhou maior visibilidade porque as instituições não-lucrativas de microfinança conseguiram encontrar maneiras inovadoras de abordar o problema da pobreza e exclusão. Entre elas está a concessão de microcrédito com vista ao desenvolvimento de iniciativas económicas sustentáveis que permitissem ao mutuário criar o seu próprio emprego e melhorar as condições de vida do seu agregado. Os sucessos desta abordagem da pobreza e marginalização social por estas instituições de microfinança passam, por um lado, por terem como vocação social procurar melhorar a situação económica das populações mais vulneráveis e, por outro, por o fazer através da inclusão destas na economia. Procurando viabilizar iniciativas empresariais, as instituições que concedem microcrédito desenvolveram práticas de acompanhamento e apoio aos mutuários e aos seus negócios, para além do seu financiamento. Isso traduziu-se em elevadas taxas de cumprimento, o que constitui um indicador da sustentabilidade destas iniciativas. A verificação de que é possível emprestar aos pobres de forma sustentável - graças aos mecanismos que as instituições de microcrédito desenvolveram para selecionar candidaturas, definir modalidades de reembolso, incentivar o seu cumprimento e a boa aplicação dos montantes concedidos - chamou a atenção dos Estados para uma forma alternativa de lidar com os problemas de pobreza, desemprego e marginalização social numa perspectiva mais sustentável e menos assistencialista. Chamou também a atenção do sector privado, que outrora tinha um reduzido interesse em conceder pequenos montantes de crédito a clientes pobres sem garantias face aos elevados custos de transação e riscos associados, e que agora se apercebem que este é um nicho de mercado, não só potencialmente rentável como de uma enorme dimensão, dados os milhões de indivíduos que ainda hoje, a nível mundial, não têm acesso a serviços financeiros formais.

Mas o microcrédito, enquanto fenómeno social e objeto de estudo, está emerso em controvérsia. No que respeita ao papel do Estado, muitos consideram que afetar fundos públicos para o microcrédito é subsidiar iniciativas que, pela sua reduzida dimensão, terão poucas oportunidades de chegar a um nível de eficiência que lhes permita vingar num mercado competitivo, desviando os apoios públicos de outras iniciativas de desenvolvimento social ou do apoio às PME que também enfrentam problemas de financiamento. O sector privado, por sua vez, está cada vez mais presente no sector na forma de instituições de microfinança de estatuto lucrativo ou linhas/programas de microcrédito de bancos ou instituições financeiras comerciais convencionais. Mas discute-se a crescente especulação, concorrência, e assunção de outros riscos com maior probabilidade rendibilidade, favorecendo os interesses dos investidores em detrimento dos clientes pobres. E isso foi alvo de grandes críticas, sobretudo aquando das crises de sobre-endividamento e das consequências económicas e sociais daí resultantes. Ao mesmo tempo, aproveitou-se para questionar a vocação original do microcrédito de libertar os mais desfavorecidos de situações e dependência, pobreza e exploração.

É nosso entendimento que o microcrédito tem virtudes e defeitos e que não existe uma resposta única à questão: qual o efetivo impacto do microcrédito? E também dificilmente haverá um modelo único de microcrédito virtuoso, aplicável a todos contextos geográficos, sociais, legais, económicos ou institucionais. O que retemos da análise do microcrédito é que, como outros fenómenos que facilmente se classificam de natureza económica ou financeira, o microcrédito é antes de tudo um fenómeno social, afetado nas diversas modalidades, nas suas forças e fraquezas e nos seus impactos pelas características do contexto social mais amplo em que se insere.

A Economia clássica, mas também a teoria social, centraram excessivamente a análise da sociedade a partir do mercado desde a industrialização e o surgimento da economia capitalista do século XIX. Como sustenta Polanyi (2012 [1944]), em vez de se perceber as relações económicas no seu contexto social, tomou-se o mercado como principal mecanismo de regulação da vida social.

Em nosso entender existem hoje, como no passado, formas de organização económica a que as categorias de agente racional ou maximização do lucro não se aplicam. Há uma pluralidade de formas de atividade económica que escapam às categorias (neo)clássicas, e não se resumem ao que muitos definem como economias comunitárias de tipo pré-industrial, o que em si é já uma definição redutora das mesmas. Assim, fomos procurar, não só em perspetivas económicas não-ortodoxas, especialmente as correntes institucionalistas, como na nova Sociologia Económica, mas também na Antropologia, na Biologia e na Psicologia evolutivas, sustentação para pensar os fenómenos económicos de uma forma mais pluralista e abrangente, na diversidade e complexidade que eles se manifestam na prática. A contextualização social deste fenómeno levou-nos a considerar os contributos do Institucionalismo Económico, da Sociologia Económica, da Antropologia e das perspetivas evolucionistas que nos esclarecem, não só como explicar comportamentos de reciprocidade e cooperação na esfera económica, como a diversidade de representações e práticas que constituem as diferentes formas de organização da economia enquanto esfera da vida social, bem como a forma como as instituições evoluem. Estas perspetivas orientaram o enquadramento teórico deste trabalho e permitiram a discussão dos dados aqui analisados respeitantes ao desempenho, sustentabilidade e impacto das diferentes tipologias institucionais envolvidas no microcrédito.Tal levou-nos a considerar questionáveis os pressupostos da visão mainstream do que é o homem enquanto agente económico e de como a vida económica se organiza confinada ao mercado; consideramos que, como sustentam vários autores, não existem razões para tomar o homem apenas como sujeito racional, calculista e maximizador do seu benefício no mercado ou que este último tenha a capacidade de se autorregular e tender sempre para o equilíbrio. As crises financeiras que se tornam económicas e sociais e atingem dimensões globais revelam as limitações do mecanismo de mercado na afetação de recursos escassos à satisfação das necessidades dos indivíduos. E existe base teórica para sustentar que a vida económica não é necessariamente um contexto de competição feroz por recursos escassos e que o homem tem uma propensão para a partilha e cooperação. Essa capacidade de cooperar este por trás tanto do sucesso evolutivo de coletividades humanas como de não-humanas, pelo que rejeitamos a ideia de um homo-economicus calculista e hedonista e caracterizamos formas de organização económica em que noções como ação solidária, bem comum, confiança, altruísmo, coresponsabilidade e reciprocidade são aspetos sociais, institucionais e, portanto, normativos a que as relações económicas estão submetidas.

Não encontramos estes laços de altruísmo e reciprocidade apenas nas comunidades rurais tradicionais, mas em outros tipos de iniciativa económica local em que se destaca a capacidade da sociedade civil ultrapassar falhas de Estado e de mercado e se organizar, não face ideologias políticas ou imperativos de rendibilidade, mas em vista dos interesses dos membros do que chamamos comunidade, no sentido relacional do termo.

É aqui que julgamos residir a virtude do microcrédito formal original. Vêmo-lo enquanto iniciativas que, antes de tudo, têm uma missão social de beneficiar os mutuários abrangidos e contribuir para o desenvolvimento local. Os protagonistas são instituições do terceiro sector ou inseridas em intervenções mais holísticas visando a melhoria da situação global das populações mais desfavorecidas, atendendo às várias dimensões da pobreza e exclusão social. Assume-se que há um conjunto de diferentes necessidades a que importa dar resposta em cada contexto específico. As iniciativas de microcrédito sustentáveis no plano económico e social terão que ser eficientes no plano financeiro, para atrair o investimento do sector privado que lhes permita aumentar a escala das suas operações para responder ao propósito social de servir aqueles que ainda não têm acesso a crédito e se encontram em situações de precaridade ou exploração; poderão também necessitar do apoio e supervisão por parte de instituições políticas nacionais e internacionais que lhes reconheçam o mérito de encontrar uma forma viável de combater a pobreza. Porém, a nosso ver, para além de Estado e mercado, e de relações de redistribuição ou troca mercantil, deveremos vê-las como relações de reciprocidade ou iniciativas de cariz solidário e natureza local, em que a qualidade das relações que se estabelece entre membros de grupos de empréstimo e entre mutuários e intermediários ou instituições de microfinança pode fazer a diferença entre o sucesso e o fracasso das iniciativas de microcrédito. Por último, procurar perceber todos os fatores que contribuem para o sucesso ou fracasso do microcrédito para credores e mutuários leva-nos a não esquecer que existe uma variedade de atores que intervêm no microcrédito, com missões institucionais e, consequentemente, atuações distintas que explicam a variedade dos resultados da concessão de microcrédito.

Não existirá, senão na sua definição formal, um microcrédito, mas várias formas de microcrédito em contextos políticos, demográficos, económicos e geográficos distintos. Porque é do carácter das relações sociais que se estabelecem, de representações sociais e aspetos normativos que condicionam a ação no plano do microcrédito que se trata, entendemos que perceber as diferentes lógicas que animam os autores envolvidos - sobretudo olhando ao papel de Estado, mercado e terceiro sector, e as consequências das suas ações - implica a nosso ver, não só o enquadramento social do microcrédito, mas a sua análise institucional que nos propusemos realizar neste trabalho. É em função disto que o problema de investigação que nos acompanhará ao longo desta tese se pode formular do seguinte modo: em que medida o contexto institucional explica a variedade de lógicas e formas de atuação dos agentes intervenientes no microcrédito, o seu desempenho e os impactos daí resultantes para os mutuários.

Palavras-chave: Microcrédito; institucionalismo; incrustação social da atividade económica; reciprocidade; Estado, mercado e terceiro sector