Teses Defendidas

Ecologia de justiças a Sul e a Norte. Cartografias comparadas das justiças comunitárias em Maputo e Lisboa

Sara Araújo

Data de Defesa
29 de Dezembro de 2014
Programa de Doutoramento
Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI
Orientação
António Casimiro Ferreira e João Pedroso
Resumo
Esta tese nasceu do objetivo de abordar a sociologia do direito a partir das reflexões e das propostas das Epistemologias do Sul, tendo como horizonte a reflexão sobre a descolonização do pensamento jurídico. A investigação parte de temas clássicos da sociologia e da antropologia do direito - o pluralismo jurídico e as justiças comunitárias -, a que procura trazer uma leitura renovada a partir da sociologia das ausências e das emergências enquanto proposta epistemológica contra o desperdício da experiência do mundo. A questão que dirige a investigação assume a seguinte formulação: qual o papel das justiças comunitárias na promoção do acesso ao direito e à justiça e na transformação das sociedades? As justiças comunitárias são instâncias de resolução de litígios que recorrem a uma terceira parte imparcial, não pertencente ao poder judicial, para promover a resolução dos casos que lhes são apresentados. Apesar de afinar a definição ao longo da tese, os limites são traçados sobretudo pela negativa, por oposição aos tribunais judiciais. Se esta opção pode ser entendida como fraqueza, é a flexibilidade de fronteiras decorrente dessa condição que torna o conceito de justiças comunitárias um instrumento epistemológico relevante. O conceito funciona como categoria de partida, uma ferramenta intermédia para elaborar cartografias jurídicas que vão além da leitura por oposição. A sociologia das ausências visa conhecer e credibilizar a diversidade das práticas sociais existentes no mundo face às práticas hegemónicas. A sua operacionalização é feita pela substituição das monoculturas do conhecimento, que o contraem, por ecologias, que o dilatam. A ecologia de saberes é o seu instrumento mais forte. Partindo do conceito de ecologia de saberes, procuro promover uma ecologia de justiças, confrontando a conceção liberal do direito e da justiça e as hierarquias impostas pelo cânone do direito moderno com a diversidade de direitos e de justiças que existem no mundo, contribuindo para o conhecimento e a valorização da diversidade que cabe no interior da ideia de pluralismo jurídico. Daí que o conceito de justiças comunitárias seja necessariamente flexível. Para poder usá-lo como ferramenta no combate ao desperdício da experiência, procurei uma categoria e uma definição amplas com o objetivo de chegar ao terreno mais resistente à influência de preconceitos, evitar a exclusão de instâncias apenas por não encaixarem numa definição fechada, e ter a possibilidade de dar conta de uma realidade móvel e diversificada, tantas Resumo xvi vezes não previsível. Não procurei o "exótico", o "tradicional" ou o "informal" e não privilegiei ou exclui as estruturas criadas, incentivadas ou reconhecidas pelo Estado, arrumadas ou não na gaveta das "alternativas". Na categoria de justiças comunitárias cabem novas e velhas formas de direito e de justiça, bem como instâncias híbridas criadas em zonas de contacto entre o Estado e a comunidade que não se acomodam nas variáveis modernas dicotómicas (formal/informal; tradicional/moderno; oficial/não oficial). A concretização da ecologia de justiças foi dividida em dois momentos de investigação empírica: a abordagem macro e a abordagem micro. O primeiro teve como objetivo conhecer a diversidade e partiu da delimitação prévia de zonas geográficas e não de objetos de investigação concretos. Definidos os centros urbanos de Maputo (Distrito de KaMfumo) e Lisboa (Município de Lisboa), dei início a um processo cartográfico que resultou em mapas das justiças comunitárias que operam nas zonas identificadas. As justiças comunitárias passaram a assumir nomes e a caber em categorias concretas. Em Maputo, destacam-se as instâncias híbridas nascidas em zonas de contacto e em resultado da heterogeneidade do Estado. Em Portugal, são protagonistas as justiças comunitárias que decorrem dos processos de desjudicialização e informalização controlados pelo Estado. O segundo momento da ecologia de justiças assentou numa análise micro das rotinas com base numa grelha com seis grupos de variáveis (instância, conflitualidade, proximidade, processo de resolução, resultados e presença). Partindo dos mapas e de critérios preestabelecidos, selecionei cinco instâncias para esta fase: a 7º Esquadra da Cidade de Maputo, o Gabinete Modelo de Atendimento à Mulher e Criança Vítimas de Violência e a Associação Nós por Exemplo (Maputo); o Julgado de Paz de Lisboa e o Sistema de Mediação Familiar (Lisboa). Estas instâncias tendem a funcionar como plataformas de acesso ao direito e à justiça, ainda que as variáveis exibam diferenças substanciais. Como palcos de transformação social assumem papéis heterogéneos e revelam limitações, mas observando os indicadores com as lentes da sociologia das emergências, isto é, numa lógica de ampliação simbólica dos saberes e práticas, é identificada a presença de potencial para desafiar o patriarcado e a colonialidade.