Seminário | GRUPO DE TRABALHO POLICREDOS

Fetichismo e o Materialismo Conspiratório

André Menard

Iracema Dulley

Lior Zisman Zalis

5 de maio de 2022, 17h00 (GMT+1)

Evento em formato digital

O colonialismo edificou um vocabulário próprio para nomear aqueles que o ameaçavam. Um vocabulário da alteridade radical forjado por um projeto hegemônico de humano, de matéria e de pensamento. Animismos, fetichismos, xamanismos, idolatrias, sodomias, feitiçarias e bruxarias, conceitos frutos de uma episteme narcísica, são partícipes da construção da Europa enquanto idéia, e das ciências sociais enquanto disciplina. Se o próprio conceito de Europa dependeu da sua exterioridade, essa gramática do outro teve um papel central na sua edificação. Ainda que sua origem esteja inscrita na violência, repressão, no racismo e no epistemicídio, esses conceitos migraram e ganharam novos percursos, edificando trajetórias próprias. Ora insistindo ou recalcando o seu passado colonial, ora encontrando outro devir. Cada um à sua maneira, têm ocupado um lugar central no pensamento crítico contemporâneo.

O conceito de "Fetichismo", em particular, arrasta um arquivo próprio: o arquivo dos seus usos, dos territórios por onde passou, das práticas que nomeou, da sua participação em acusações e nos processos de tradução que sofreu ou dos quais que resultou. Derivado da palavra "feitiço" é utilizado para designar de forma negativa e racista as práticas religiosas nas colônias, passou a significar, além do estágio mais primitivo dentro de uma teleologia espiritual, a materialidade heterogênea do outro. Através de uma conspiração epistemológica contra o saber ocidental, ingressou nos circuitos teóricos como o lugar da falta, do inapropriado e do equívoco. Fetiche, assim, tornou-se aquilo que é opaco, suspeito e contingente. Ainda assim, possui um passado próprio, um passado inscrito na violência colonial, aglutinando usos, pessoas, práticas, formas de pensar, de fazer e de estar no mundo. "Fetichismo" é um conceito-arquivo. Escavar esse arquivo, ativar as memórias esquecidas e soterradas do "fetichismo", os substratos de tempos coagulados e os silêncios semânticos é a proposta deste seminário.

Não é casual que tenha ocupado o lugar de uma teologia subvertida, herética e religiosamente pervertida. "Fetiche" e "Fetichismo" são dois conceitos chave na arquitetura desta gramática do outro, sobrevivendo no pensamento crítico como uma crítica à economia moderna do desejo e a instabilidade dos valores sexuais, econômicos e estéticos. Em seu texto En defensa del fetiche (2010), Mariana Botey e Cuauhtémoc Medina falam do fetiche como espaço da cognição imperfeita que aparece a cada momento em que é preciso referir-se a impossibilidade e obrigatoriedade de estabilizar necessidade e produção, utilidade e demanda, racionalidade e valor, sentido e matéria. William Pietz (1989) fala da "materialidade irredutível" do fetiche. Karl Marx o vincula a religião do apetite dos sentidos. Sigmund Freud, ao objeto inapropriado do desejo sexual. Todos esses projetos suscitam uma materialidade heterogênea, pervertida e marginal que recusa qualquer estabilização.

Promovendo um debate sobre as possibilidades políticas, poéticas e epistemológicas incrustadas no conceito de "Fetichismo", pretende-se questionar a atualidade deste conceito dentro de um debate pós-colonial e os seus devires enquanto instrumento crítico e perturbador de um saber colonial. Desobediente, ao mesmo tempo em que o "Fetichismo" conspira e confabula outros modos de pensar o poder, o material e as traduções interculturais, ele desestabiliza o saber por sua incapacidade de ser contido ou domesticado.

Atividade no âmbito do grupo de trabalhos POLICREDOS 
 

Notas biográficas

André Menard
é antropólogo e professor no Departamento de Antropologia da Universidade do Chile. Tem participado em diferentes projectos de investigação e publicado obras referentes principalmente à história política mapuche, com particular destaque para os escritos e arquivos indígenas e mais especificamente para o trabalho do escritor e líder místico mapuche Manuel Aburto Panguilef. Nesta área, publicou os livros Mapuche y Anglicanos: Vestigios fotográficos de la Misión Araucana de Kepe (1896-1908) (em co-autoria com Jorge Pavez, ed. OchoLibros, 2007) e o Libro Diario del Presidente de la Federación Araucana, Manuel Aburto Panguilef (CoLibris, 2013). Nos últimos anos tem desenvolvido investigação em torno da noção de fetiche e do seu âmbito teórico para ler as interacções práticas e conceptuais entre materialidade, magia e política.

Iracema Dulley é Investigadora no ICI Berlim - Instituto de Inquérito Cultural. Seus interesses de investigação situam-se nos campos da antropologia sociocultural e filosófica, história, e psicanálise. Baseando-se em anos de envolvimento com a Angola colonial e pós-colonial, o seu trabalho tem abordado a relação entre elementos socioculturais, políticos, históricos, e linguísticos na constituição do sujeito através de questionamentos de processos de diferenciação, escrita etnográfica, tradução, nomeação, feitiçaria, e de missionalização. É autora dos livros On the Emic Gesture (Routledge 2019), Os nomes dos outros (Humanitas 2015), e Deus é feiticeiro (Annablume 2010) e de vários artigos e capítulos de livros.

Lior Zisman Zalis (Centro de Estudos Sociais - Universidade de Coimbra) - Doutorando em Pós-Colonialismos e Cidadania Global pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e bolseiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) com o projeto "Espiritualidades Insurgentes e Políticas Encantadas: Em Torno do Problema Teológico-Político no Brasil". Mestre em Estudios Comparativos de Literatura, Arte y Pensamiento pela Universidad Pompeu Fabra, Barcelona com a tese "Toda piedra puede ser océano: una historia migrante del fetichismo", formado no Programa de Estudios Independientes (PEI) do Museu d'Art Contemporani de Barcelona em Teoria Crítica e Estudos Museológicos (Barcelona, 2017-2018) e é bacharel em Direito com especialização em "Estado e Sociedade" pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), onde foi pesquisador no Núcleo de Direitos Humanos (NDH) e participou de pesquisas no campo da memória e da ditadura militar. Dedica-se sobretudo a temáticas relacionadas aos estudos culturais, teorias pós-coloniais à memória da colonização no Brasil, nomeadamente em suas articulações com concepções de religião e política.

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Esta atividade realiza-se através da plataforma Zoom, sem inscrição obrigatória. No entanto, está limitada ao número de vagas disponíveis > https://us02web.zoom.us/j/83810805002?pwd=ZDNBb0FlQ1dkVW5RRSsrSzlBM29ZUT09 | ID: 838 1080 5002 | Senha: 223997 

Agradecemos que todas/os as/os participantes mantenham o microfone silenciado até ao momento do debate. A/O anfitriã/ão da sessão reserva-se o direito de expulsão da/o participante que não respeite as normas da sala.

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