PENSAR A COMIDA, PENSAR O MUNDO
Oficina VII
Lior Zisman Zalis
Manuela Meireles
7 de junho de 2022, 16h00 (GMT+1)
Evento em formato digital
Programa
Manuela Meireles (CES): “Comida de Santo: utilizações ritualísticas e práticas comunitárias envolvendo comida nas Umbandas”
Resumo: Comida faz parte da cultura e são diversas os entrelaçamentos entre tradições culinárias e religiosidades. Nas práticas religiosas umbandistas não é diferente. São vários os atravessamentos das comidas dentro das diferentes vertentes da Umbanda; não apenas em aspectos ritualísticos específicos, mas também, dentro de uma compreensão ampla de religião (Spickard, 2017), dos seus aspectos de criação de laços comunitários.
É através da crença na partilha de energias dos homens com os outros seres, sejam ervas, animais, pedras, rios, espíritos e divindades, que a comida obtém papel fundamental de ser um desses elementos que possibilita a troca entre o mundo visível e o invisível (Simas, 2019, 2021). Nas Umbandas, há as chamadas “Comidas de Santo”, preparos ritualísticos de alimentos que carregam a energia daquele Orixá específico a quem se quer oferendar, a fim de reequilibrar a energia dos seus praticantes.
Mas o uso da comida não se restringe a isso: ela é utilizada para limpezas espirituais, oferendas com pedido ou agradecimentos para divindades e espíritos, como dinamizadores energéticos nas manifestações dos espíritos através do transe mediúnico e também nos vínculos entre a comunidade. São nas festas dedicadas a Ogum que são servidas pelos terreiros no Rio de Janeiro as tradicionais feijoadas, é na distribuição de saquinhos com doces de São Cosme e Damião que se homenageiam os santos padroeiros das crianças em setembro e é entre petiscos com cerveja que muitas festas para a Malandragem se dão nos terreiros cariocas.
Partindo da noção de religião enquanto cultura, e esta como uma produção em constante movimento (Hall, 1996; 2016; Gilroy, 2001), cabe dizer que, com a transnacionalização dessas práticas para Portugal, é possível perceber diversas adaptações no novo território (Pordeus, 2006; 2009;Guillot, 2010; 2012). Com o início do trabalho de campo em terreiros de Umbanda em Portugal, será possível discutir também como as ritualísticas e práticas ligadas às comidas foram ressignificadas e adaptadas no contexto português.
Lior Zalis (CES):"As bocas que comem e outros sistemas digestivos: as materialidades do alimento nas ações políticas"
Resumo: A questão da comida está atrelada diretamente ao conceito de vitalidade. Não apenas por sua função de fornecer energia a um corpo, mas na multiplicidade de energias e de corpos que mantém vivos. Há muitas formas de dar de comer e outras muitas de comer. Se na sua dimensão fisiológica metabolizar a comida é sustentar um corpo, a pergunta por quem come e como come orienta uma reflexão sobre metabolismos alternativos e outros sistemas digestivos. Entender a pluralidade da materialidade alimentar é, portanto, expandir a dimensão epistemologica das formas de digestão. Na multiplicidade de bocas que comem, a comida adquire um sentido elástico. Sua materialidade heterogenea transborta os limites das suas propriedades nutricionais para mergulhar nas multiplas formas fazer viver. No campo das práticas espirituais e religiosas conseguimos verificar essa torção onto-epistemológica da materialidade alimentar: ela serve não apenas para ser ingerida, mas também como dinamizadora de processos socio-espirituais.
Nesta apresentação pretendo explorar a idéia de otros sistemas digestivos através da relação entre comida e ação política. Quando os alimentos são utilizados não apenas para a digestão humana, mas também para a não-humana, ele se transforma em um elemento tático ou recurso agencial de sociabilidades entre multiplos seres. “Dar de comer” é uma forma de louvar, adorar, pedir e cuidar de outras entidades, seres e divindades dentro de diferentes culturas. Os “despachos”, as oferendas, os sacrificios e outras formas de “dar de comer” conformam uma arquitetura tática interessante para repensar o papel social da comida. Conceitos como o de “ebó epistemológico” (Simas e Rufino, 2018; 2019; Rufino, 2019) e despachos (de la Cadena, 2010) tomam o alimento dentro de diferentes processos de reencantamento das formas de conhecimento. Se certas formas de dinamizações de energias vitais são colocadas em marcha por conta de certos rituais e práticas com alimentos, aparece uma materialidade heterogenea que, consequentemente, demanda uma digestão específica. Pretendo, portanto, refletir sobre estas diferentes materialidades e explorar a idéia de uma pluralidade de sistemas digestivos e formas alternativas de metabolismos, especificamente naqueles implicados em uma relação com os não humanos.