CES (com)vida 2020

A Covid-19 e as crianças. Uma análise sociojurídica.

Patrícia Branco

Na sua primeira aula magistral de 2020, Boaventura de Sousa Santos instigou-nos a examinar os efeitos da quarentena provocada pela Covid-19 em diversos grupos de pessoas, que se encontram em situação de vulnerabilidade ou para quem o isolamento social representa uma situação muito negativa. Falou das mulheres, das e dos precárias/os, das e os sem-abrigo, das e dos refugiadas/os, das e dos idosas/os, das e dos presas/os. Mas há um grupo particularmente vulnerável a que também se deve prestar atenção: o das crianças (e dos jovens). Até porque as relações com os outros grupos apresentados são múltiplas, e dessas relações depende o maior ou menor impato que a Covid-19 poderá ter sobre as crianças (e os jovens).

Apesar de nesta pandemia o número de contágios entre crianças e jovens ser muito inferior (e com efeitos ligeiros) em relação ao que acontece noutros contextos epidémicos (segundo dados da OMS e da UNICEF), as crianças encontram-se particularmente vulneráveis aos efeitos sociais e económicos advindos do confinamento. Certamente que as crianças não são todas iguais, e nem os impatos do isolamento se farão sentir da mesma maneira em relação a elas. O isolamento a que a Covid-19 nos obrigou tem, seguramente, um efeito de amplificador das desigualdades sociais. Irei referir-me a alguns dos impatos que a Covid-19 já está a ter sobre as crianças, e cujas sequelas durarão no tempo.

Comecemos com o isolamento em casa. Casas há muitas, com jardim, com varanda, ou sem nada disso. Há crianças que vivem em casas pequenas (como em Nápoles, no sul da Itália, onde famílias de seis pessoas – 4 são crianças – vivem em 20m2), muitas sem condições de habitabilidade e de salubridade, o que torna difícil a simples operação de lavar as mãos com frequência. E há crianças que não têm casa, como as crianças refugiadas no campo de Moria, em Lesbos, na Grécia (de relembrar que no mundo existem mais de 12 milhões de crianças refugiadas), onde as condições de higiene são quase inexistentes. Para estas últimas, a Covid-19 pode significar ainda a perda do ou dos adultos cuidadores de referência.

Há que pensar, também, nas crianças que vivem com as mães na prisão. Pensemos ainda nas famílias monoparentais; ou nas crianças cujos cuidadores são as e os avós.

Ficar em casa pode evitar o contágio, mas pode, segundo as/os pediatras, ter efeitos perversos no desenvolvimento, já que a assunção de vitamina D e a prática de exercício ao ar livre são fundamentais. E há crianças para quem é fundamental esta rotina de sair à rua, como no caso das crianças autísticas. Mas aqui o superior interesse das crianças à saúde parece ser inferior ao que os canídeos têm, já que os vários decretos emanados, por exemplo, pelo governo Italiano se referiram expressamente aos passeios com os cães, mas nunca se referiram às crianças. Uma ausência que nem é de estranhar, já que há bastante tempo que as/os especialistas alertam para a elevada sedentarização das crianças em contraposição ao elevado exercício praticado por muitos cães (veja-se Carlos Neto, investigador da FMH da UL). Mesmo que recentemente o governo Italiano tenha, de certo modo, corrigido esta questão, esclarecendo que às crianças é permitido sair por tempo breve e perto de casa, as reações logo se fizeram sentir, com muitos progenitores a queixarem-se de terem sido insultados pelos vizinhos e terem medo de sair de casa: assistimos aqui a uma atitude próxima à de um fascismo social.

Ficar em casa significa, muitas vezes, ficar num ambiente hostil. Se neste período aumentou a violência doméstica, aumentaram também as possibilidades de estarem envolvidas crianças. Para as crianças em situação de risco diminuiram as formas de se fazer escutar, com as visitas pelas/os técnicas/os das CPCJ reduzidas ao estritamente necessário. Mas também porque as escolas, muitas vezes as principais sinalizadoras das situações, fecharam.

O fecho das escolas levou a que a prossecução do ano escolar se tivesse de fazer através de meios ou ferramentas virtuais, com didática à distância. Logo aqui os efeitos são mais que muitos: há crianças que têm computador, tablet, smartphone, que sabem manusear os aparelhos e as aplicações, cujos progenitores as conseguem auxiliar nesse manuseamento; mas também há quem, mesmo tendo os aparelhos, é analfabeta informático e as dificuldades para aceder às plataformas digitais (até mesmo a inscrição nas mesmas) são muitas. Previamente, é preciso as escolas estarem dotadas de instrumentos que sejam capazes de providenciar uma didática à distância, e que as/os professoras/es sejam também capazes, num curto espaço de tempo, de preparar aulas e materiais. As respostas foram muito diferenciadas, de escola para escola, de professora para professor, de criança para criança. Veremos o que acontecerá depois da pausa letiva da Páscoa, já se falando, em Portugal, do regresso da telescola. Não podemos esquecer, porém, o papel desempenhado pela escola em termos de um certo nivelamento social, e de como as desigualdades de aprendizagem se vão agudizar.

O fecho das escolas não tem efeitos apenas em termos da aprendizagem. Há crianças cuja única refeição quente é comida nas escolas. Apesar de tudo, em Portugal, mais de 700 escolas continuam a assegurar as refeições. Há famílias, porém, que, antes da pandemia, conseguiam assegurar que em casa nada faltasse. Mas muitas pessoas são trabalhadoras precárias ou trabalham no mercado informal de trabalho, e perderam a sua fonte de rendimento. Há situações que são de desespero. E são as crianças que delas dão conta, revelando, nas suas ações, formas de resistência. É o caso da menina italiana que telefonou à polícia dizendo que em casa não havia nada para comer. O seu telefonema lançou um alerta e levou os agentes da polícia a intervir, levando géneros alimentares. E há muitas associações comunitárias que estão a intervir, pois, dado o seu conhecimento do território e dos problemas, conseguem, mais facilmente, acionar mecanismos de resposta.

A Covid-19 também irá levar os tribunais de família a intervir nas situações de visitas, e nos muitos casos em que vai deixar de haver pagamento dos alimentos a menores.

Finalmente, há que pensar nas crianças que perderam os idosos da sua família e nem puderam fazer o luto.