Seminário

Discursos que pesam: (re)pensando processos de materialização corporal a partir dos novos materialismos feministas

Caynnã de Camargo Santos (CES)

9 de outubro de 2023, 17h00

Sala 2, CES | Alta

Comentadora: Virgínia Ferreira (FEUC/CES)


Enquadramento

No seu seminal Bodies that Matter, Judith Butler (1993) argumenta que normas regulatórias e práticas discursivas estão associadas não apenas a processos de subjetivação – estes, abordados anteriormente pela autora em Gender Trouble a partir de sua teoria da performatividade de gênero –, mas também à produção da própria materialidade dos corpos. Pautada na ênfase foucaultiana na faceta produtiva das dinâmicas de poder-saber que tomam parte na modernidade ocidental, Butler (1993) afirma que o corpo e as diferenças sexuais devem ser compreendidos como resultados de processos historicamente contingentes e ideologicamente investidos de materialização, em detrimento das habituais compreensões naturalistas que os identificam como facticidades biológicas dadas e pré-discursivas.

Entretanto, no decorrer de sua argumentação, observamos que a noção de “materialização” proposta pela autora e os potenciais constitutivos atribuídos por ela às práticas discursivas são majoritariamente circunscritos aos domínios da linguagem, dos sentidos e das estruturas de inteligibilidade, ênfase que enseja uma subteorização do corpo físico e das dimensões materiais das práticas regulatórias através das quais corpos são performados.

Haveria, porém, alguma forma de literalizarmos as alegações pós-estruturalistas de que os corpos são produzidos discursivamente? Seria realmente possível que o poder e as normas regulatórias construam corpos para além do nível conceitual? Se sim, como isso se daria? Ainda, quais seriam as modificações a serem feitas nos entendimentos que habitualmente nutrimos acerca da natureza das “práticas discursivas”, que nos permitiriam realizar essa superação dos limites linguísticos e epistêmicos que habitualmente marcam posições construtivistas sobre os corpos?

Neste seminário, procuramos demonstrar que as recentes contribuições dos chamados novos materialismos feministas – e, especialmente, a modalidade de novo materialismo proposta pela física e feminista estadunidense Karen Barad, nomeada de realismo agencial (Barad, 2007) – podem iluminar nossos entendimentos sobre as relações estabelecidas entre práticas discursivas e a materialidade dos corpos, no sentido de tensionar, ao ponto de munir de literalidade, a máxima pós-estruturalista de que os discursos “formam sistematicamente os objetos de que falam” (Foucault, 2008, p. 55).

O material empírico que animará nossas discussões foi produzido no âmbito de uma investigação de doutoramento cujo objetivo principal foi interpelar, a partir de uma perspectiva sociológica informada pelos novos materialismos feministas, os complexos entrelaçamentos material-discursivos inerentes às vivências de mulheres com Síndrome de Mayer-Rokitansky-Küster-Hauser (MRKH) em suas interações com o saber e a prática biomédicos.


Notas biográficas

Caynnã de Camargo Santos | Doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra, Mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo, no Programa de Estudos Culturais, e graduado pela Universidade de São Paulo. Atualmente é Investigador em Pós-doutoramento no Centro de Estudos Sociais, integrando o projeto "ENGENDER: Integração dos Estudos de Género nos curricula e práticas pedagógicas no ensino público universitário em Portugal". Tem desenvolvido sua investigação e publicado nas áreas de Estudos sobre as Mulheres, de Gênero e Feministas, atuando principalmente nos seguintes temas: sociologia das relações de gênero, teorias feministas pós-estruturalistas, corpo, novos materialismos feministas e realismo agencial.

Virgínia Ferreira Doutorada em Sociologia pela Universidade de Coimbra; Professora Associada da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC); Investigadora Permanente do CES. Tem estudado o modo como as relações sociais de sexo se expressam em vários fenómenos e processos e estruturas sociais, tendo em conta, nomeadamente: as mudanças económicas e políticas; a regulação do mercado de trabalho; as transformações tecnológicas; os regimes de bem-estar e outras instituições sociais; e as atitudes e práticas das mulheres e dos homens no trabalho, no emprego e na esfera doméstica. Recorrendo, sobretudo, a métodos de pesquisa qualitativa, mas também quantitativa, tem dado especial atenção à feminização das profissões, às transformações nos padrões de segregação sexual do emprego, em geral, e à evolução das políticas públicas de promoção da igualdade de mulheres e homens. Membro do Conselho Editorial de algumas revistas nacionais e internacionais, é membro fundadora da Associação Portuguesa de Estudos Sobre as Mulheres. Desde 2004 que é membro da European Commission Expert Group on Gender and Employment. A sua obra publicada inclui artigos e ensaios em revistas e em coletâneas nacionais e internacionais.