Seminário

Desafios à descolonização do Direito: as diferentes formas de exclusão e a expansão do cânone jurídico 

Alex Ferreira Magalhães

Arion Escorsin de Godoy

Sara Araújo

25 de março de 2020, 15h00 (CANCELADO)

Sala 2, CES | Alta

Resumo

Sara Araújo | As epistemologias do Sul e a sociologia do direito:  as ausências das velhas perguntas e as questões emergentes

As Epistemologias do Sul são mais do que um conjunto de conceitos que acrescentamos à literatura crítica. Em oposição às receitas universais, desafiam as ciências sociais a reformularem velhas questões, lançarem novas perguntas, repensarem abordagens e metodologias, ampliarem a realidade visível e expandirem a imaginação política. A linha abissal é uma formulação de Boaventura de Sousa Santos que oferece uma imagem visual dos alicerces excludentes da modernidade. Esta metáfora representa uma divisão ontológica e epistemológica, que separa humanos de não humanos e conhecimento de ignorância. Do lado de cá, a opressão é visível e a resistência pode ser expressa em linguagem jurídica reconhecida, sendo, por isso, escrutinável. Do lado de lá, não vale o contrato social. Não é apenas o lugar dos excluídos, mas dos não candidatos à inclusão. É a zona de não ser de Frantz Fanon, o lugar da cidadania de segunda na formulação do Estado bifurcado de Mamhood Mamdani. Nesta sessão, refletindo sobre os dois lados da linha e recorrendo a exemplos de estudos empíricos em diferentes continentes, reflito sobre os desafios que a epistemologias do sul lançam à sociologia do direito. Farei um exercício de identificação das ausências produzidas pela pergunta clássica “pode o direito ser emancipatório?”, procurando formular novas perguntas com potencial para expandir o cânone jurídico, num horizonte de descolonização, desmercantilização e despatriarcalização.

 

Arion Escorsin de Godoy | O acesso à justiça entrincheirado entre o passado e o futuro: reflexões sobre uma Defensoria Pública pós-abissal

A reprodução acrítica de desenhos institucionais nos países da periferia do capitalismo global constitui um dos campos em que é mais evidente a manifestação do colonialismo. Esta lógica, entretanto, foi residualmente fissurada, no Brasil, na Constituição de 1988 com a criação da Defensoria Pública, instituição sem par nos Estados Unidos ou mesmo nos tempos áureos do Estado de bem-estar social europeu.

Contemporaneamente, contudo, são perceptíveis os limites em que esbarra a institucionalidade concebida sob as balizas do Estado moderno de raízes eurocêntricas, notadamente no que diz respeito à frustrada promessa de incorporação política, econômica e jurídica dos excluídos por meio do Estado de Direito. Tais limites decorrem, de um lado, de aspectos conjunturais, como a erosão do pacto social que fundou a dita Constituição Cidadã, mas sobretudo se relaciona a processos estruturais que o sistema de justiça nunca logrou enfrentar de modo a efetivamente deslocar a linha abissal, incluindo no metafórico território metropolitano populações herdeiras do controverso patrimônio colonial-escravocrata. Nesses termos, há, portanto, questões que dizem respeito ao funcionamento e organização do sistema de justiça, o que é invariavelmente o foco das reformas no campo, mas existe primordialmente uma questão de imaginação política, algo demasiadamente esquecido no debate público atual.

O que se pergunta, portanto, é: tem a Defensoria Pública capacidade de se reformar para compor um imaginário jurídico-institucional pós-abissal? O futuro estaria no passado, ou seja, a lógica expansionista que vigorou até 2016 é suficiente para dar algum nível de concretude às promessas do passado? Ou seria preciso reimaginar as promessas?

 

Alex Ferreira MagalhãesO direito e as margens urbanas: o desafio da juridificação

Esta apresentação tem como base pesquisa a respeito do acesso à terra e à moradia pelas classes trabalhadoras empobrecidas nos países da CPLP, com especial foco na formação de bairros autoproduzidos. Ao lado das dimensões física e socioeconômica, busco compreender especialmente a dimensão jurídica, que me parece igualmente essencial ao fenômeno em tela. Analiso a institucionalização de figuras legais como as “áreas urbanas de génese ilegal” (AUGIs), conhecida nos sistemas jurídicos português e cabo-verdiano, ao lado das “Leis de Terras”, existentes em Angola e Moçambique. Elas representam algumas das respostas do Estado em face das dinâmicas de ação direta e coletiva de produção desses bairros, desencadeadas de modo incremental por seus moradores. Indago em que medida tais dispositivos estão à altura do problema da (in)segurança da posse, que me parece amplamente colocado na CPLP. Assim, a condição de sujeito de direito, crucial para um sistema social emancipatório, parece estar distante dos milhões de moradores dos bairros autoproduzidos. Mais do que insegurança da posse, cogito de uma generalizada insegurança jurídica, pois o sistema legal é virtualmente submetido ao sistema político (muito embora, em graus distintos, a depender do país da CPLP de que tratemos), faltando-lhe, por vezes, a autonomia que muitos (a exemplo da teoria dos sistemas, de Niklas Luhmann) tomam como pressuposto necessário para que se possa falar propriamente em “Direito”. Considero estar presente um desafio estrutural ao campo jurídico, sobretudo no contexto do Sul global: compreender como juridicamente relevantes as situações constituídas pelas classes trabalhadoras. No caso da formação dos bairros autoproduzidos, o conflito passa pelo reconhecimento dos direitos coletivos à terra, à moradia e à cidade. Trata-se, com algumas adaptações, do desafio que Jürgen Habermas definiria como o da juridificação, isto é, o de tratar como pertinente ao Direito algo que, no ponto de vista colonial (e colonizado), é visto como estranho a ele, o que excluiria a configuração de sujeitos de direito. Com base nessas referências, a presente apresentação buscará esboçar uma análise preliminar a respeito das experiências de luta pela terra ora em curso no âmbito da CPLP.