Seminário #10 | «Conversas Desconfinadas»
Pensando a complexidade da pandemia na acoplagem dos sistemas socioambientais
Ana Teixeira de Melo
Joana Vaz Sousa
Rita Campos
8 de setembro de 2020, 16h00 (GMT +01:00)
Evento em formato digital
Relatório do Seminário
Decorreu no dia 8 de setembro a 10ª sessão do ciclo de seminários “Conversas Desconfinadas”, organizado pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, tendo como tema como título Pensando a complexidade da pandemia na acoplagem dos sistemas socioambientais.
A sessão começou com Rita Campos a utilizar o conceito de ancestralidade, sublinhando como esta ideia, discutida nos últimos meses no contexto da pandemia, é mais antiga do que imaginamos, existindo mesmo antes de Darwin a popularizar, não obstante a resistência inicial à mesma. Nessa altura, a ideia de que os seres humanos não estariam num patamar superior face a outros seres vivos era mal-aceite, mesmo pela comunidade científica, resistência que tem vindo a manifestar-se a propósito do surto de COVID-19.
A investigadora utilizou este exemplo para abordar a importância das interligações que existem entre as várias espécies e seres vivos, o reconhecimento que todos existem num plano comum e seguem uma trajetória de coevolução pode ajudar a compreender a situação atual, a sua origem e como situações análogas poderão ser evitadas no futuro.
Rita Campos acrescentou que cerca de 60% das doenças infectocontagiosas emergentes têm origens em animais, como por exemplo o HIV, Ébora e os coronavírus. Estas zoonoses são sobretudo o resultado do modelo de desenvolvimento adotado nas sociedades atuais, que tem levado a pressão e invasão de ecossistemas, deflorestação, degradação e destruição ambiental, à perda de biodiversidade e ao consequente aumento das possibilidades de contacto entre humanos e animais selvagens.
Seguiu-se a intervenção de Joana Vaz Sousa, que se focou à interpretação da COVID-19 e a leitura da pandemia. A investigadora deu alguns exemplos de como o vírus foi caraterizado inicialmente e como essas caraterizações refletiam a falta de dados e discursos baseados não em ciência, mas em processos de culpabilização, desde a ideia de que a origem do vírus foi em laboratório - como inicialmente adiantada pelo Presidente dos EUA - ou através de morcegos comercializados no mercado de Wuhan na China.
Em ambos os casos, estas teses foram simplistas e focaram-se na ideia de que o surto teria uma única origem, algo que outros estudos eventualmente questionaram. Joana Vaz Sousa baseou-se nestes exemplos para sugerir uma perspetiva diferente sobre a pandemia e a sua origem, baseada na teoria One Health, que vê a saúde de todos seres vivos como interligada e fruto de relações complexas entre estes e o ecossistema. Esta teoria permite uma melhor compreensão da origem do surto que as explicações simplistas veiculadas nos média.
Para terminar, Ana Teixeira de Melo abordou as relações entre humanos e natureza enquadradas pelo pensamento complexo. Ainda antes do surto atingir o estatuto de pandemia, já se demonizava o vírus, sem que, no entanto, se fizessem esforços para o compreender. Este vírus, tal como todos os outros, está a cumprir a sua função natural. Mas desde o primeiro momento que se discute o SARS-CoV-2-19 como se fosse uma anormalidade, algo extraordinário, que tem que ser controlado pela humanidade.
Estes discursos e narrativas sobre a pandemia reforçam a dissociação entre humanidade e natureza, concebendo a última como algo mecânico, passivo de ser manipulado pelo ser humano. Os vírus não seguem tais lógicas e se em vez de se procurar compreender as causas da pandemia se focar antes no hipotético controlo da mesma, dificilmente se poderá atuar no sentido de alterar o que esteve na origem da pandemia.
Efetivamente, toda a gestão da pandemia tem-se focado nos sintomas, nos eventos, nas consequências e não nas causas e nos processos que a originaram, que implicariam necessariamente uma mudança de comportamentos e de modelos de desenvolvimento, o que atentaria contra a ideia da hegemonia humana no nosso planeta e na capacidade humana de prever e controlar o natural.
O primeiro comentário à sessão ficou a cabo de Irina Castro, que abordou a importância de se determinar a origem geográfica (ou ground zero) da pandemia, enquanto informação de extrema importância para se compreender a transmissão do vírus para humanos e a sua propagação, independentemente de essa informação poder levar a discursos xenófobos ou discriminatórios. Ao invés, a investigadora sugeriu que estes vírus ficassem associados não aos locais geográficos onde surgem, mas antes às companhias que exploram e impactam esses ecossistemas.
Para encerrar a sessão, Rita Serra discutiu a simplificação das abordagens utilizadas para lidar com a pandemia a dicotomias reducionistas, como o usar ou não-usar máscaras, que redundam invariavelmente em debates acerca de teorias da conspiração. A compreensão da propagação do vírus requer uma visão mais abrangente como fatores geográficos.
A investigadora comparou a utilização de procedimentos preventivos para conter a propagação da COVID-19 com os procedimentos de segurança alimentar. Enquanto na higiene e segurança alimentar se adotaram diversas redundâncias baseadas na lógica HACCP (hazard analysis and critical control points), uma abordagem sistemática que visa a prevenção em pontos críticos cadeias de produção, na COVID-19 promove-se a utilização compulsiva de máscaras em espaços interiores ao mesmo tempo que se permite que transportes públicos circulem cheios.