CES (com)vida 2020

Abaixo da superfície

Rita Campos

Há já muito tempo que se sabe que muitas das doenças infecto-contagiosas que afectam os seres humanos são zoonoses, ou seja, são doenças que começaram por infectar apenas outros animais, em muitos casos espécies selvagens, e que a um dado momento passaram a infectar também humanos. E a causa principal para a transmissão para humanos está relacionada com a forma como alteramos o ambiente.

As zoonoses são uma das maiores ameaças à saúde pública, e um bom indicador da estreita ligação entre biodiversidade e saúde humana. Em Fevereiro de 2015, numa parceria para unir esforços na prevenção da doença e protecção da biodiversidade, a Convenção para a Diversidade Biológica e a Organização Mundial de Saúde lançaram o relatório “Ligando prioridades globais: biodiversidade e saúde humana” (Connecting global priorities: biodiversity and human health, no original). Nele são detalhadas as extensas e complexa relações entre biodiversidade e saúde humana, nas quais se inclui o perigo do aparecimento, ou reaparecimento, de doenças infecto-contagiosas. Sobre este assunto, as mensagens-chave do relatório são:

“- As doenças infecciosas causam mais de mil milhões de infecções humanas por ano, com milhões de mortes a cada ano em todo o mundo. Aproximadamente dois terços das doenças infecciosas humanas conhecidas são compartilhadas com animais, e a maioria das doenças emergentes recentes está associada à vida selvagem.

- Mudanças no uso da terra causadas pela desflorestação são a principal causa do surgimento de doenças em seres humanos.

- As alterações ambientais que levam à perda de biodiversidade, como a desflorestação e as alterações climáticas, também podem contribuir para o surgimento de outras grandes ameaças à saúde global (…).

A biodiversidade que somos todos nós, seres humanos, juntamente com todas as outras espécies de seres vivos.

Mas a biodiversidade é também uma complexa interacção que diferentes espécies estabelecem entre si em diferentes partes do globo, os ecossistemas. Uma rede de contactos e relações que caracteriza o ambiente e que depende do delicado e frágil equilíbrio que une os seres vivos uns aos outros e ao seu lugar, o seu habitat. O mesmo equilíbrio que há muito vem sendo ameaçado pelos actuais padrões de produção e consumo que caracterizam o sistema de desenvolvimento dominante, assente em larga medida numa voraz lei mercantilista, que olha para a biodiversidade como algo distanciado de nós, humanos. Neste sistema predominantemente antropocêntrico, a biodiversidade, os ecossistemas, assumem o papel quase exclusivo de fornecedores de serviços. E então dominam as práticas extractivistas: a mineração, a desflorestação, a alteração do uso dos solos, a produção intensiva, o tráfico de espécies selvagens, a eliminação de culturas e práticas locais, quase sempre em nome de grandes marcas transnacionais.

O que se passa actualmente é que a pressão sobre os ecossistemas e a perda de biodiversidade atingiu níveis sem precedentes na história da humanidade. Abandonámos as nossas raízes naturais, esquecemos que fazemos parte desse delicado equilíbrio ecológico, em prol de um sistema económico que não apenas perturba o equilíbrio da natureza como aprofunda desigualdades sociais. De facto, a influência deste sistema é de tal maneira relevante que motivou uma nova designação para os tempos em que vivemos - o Antropoceno, a fase da vida do planeta Terra profundamente afectada pelas acções da humanidade (ainda que esta designação culpe injustamente todos por igual).   

A pandemia Covid-19 mostra-nos que fazemos parte da mesma biodiversidade que temos desprezado e explorado. Obriga-nos a reflectir para lá da superfície da contaminação. Neste momento que vivemos fica muito claro que estamos num planeta em crise. Queremos voltar à normalidade, mas foi a normalidade, como a conhecíamos, que nos trouxe até aqui. Precisamos pensar numa nova normalidade, que não assente no mesmo sistema económico dominante, capitalista e extractivista. Precisamos agir de forma colectiva para travar não só a ameaça provocada pelo surgimento do vírus SARS-Cov-19 mas também o declínio global da biodiversidade ou as alterações climáticas. Só políticas verdadeiramente transformadoras, redesenhando as nossas relações e compromissos com as pessoas e a biodiversidade, poderão garantir a sobrevivência da humanidade.
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Imagem: Modelo 3D do vírus SARS-Cov-19 feito em plasticina, em família. Porque neste momento também redefinimos os nossos tempos e papeis, fundimos o privado e o público, e reflectimos sobre os cuidados - cuidados connosco, cuidados com as outras pessoas e cuidados com as outras espécies.