ESCOLA DE INVERNO DO PROGRAMA DE INVESTIGAÇÃO EPISTEMOLOGIAS DO SUL E GENDER WORKSHOP

Winter School Feminist Ecologies of Knowledges II - Knowledges and practices for C[are]tizenship
 

27 a 31 de janeiro de 2020

CES-Sofia

Muito para além dos alertas de Simone, as Epistemologias do Sul (Santos, 2014) obrigam-nos a questionamentos que nos conduzem a considerar o potencial colonial, patriarcal e capitalista do conceito dominante de ‘mulher’ e, portanto, da emancipação das mulheres. Ao mesmo tempo, muitas feministas, a partir de diversos lugares de enunciação e de várias perspetivas (Mohanty, 1991; Amadiume, 1997; Federici, 2004; Oyewùmí, 2005; Bidaseca; Laba, 2011; Lugones, 2014; Cunha, 2014, 2015; Martins, 2016), têm vindo a interrogar, de forma profunda e complexa, as subalternidades construídas, os silenciamentos impostos, a amálgama da sua diversidade e as camadas de opressão que se dão nas vidas desses seres que se representam como femininos. Assumida a incompletude de todos os conhecimentos (Santos, 2000) e a arrogância e o autoritarismo de qualquer ciência, que não seja profundamente feminista, (Celentani, 2014), um diálogo exigente entre diversos conhecimentos feministas e as Epistemologias do Sul abre a possibilidade de construir ecologias feministas de saberes. Isto significa reconhecer, valorizar e validar a potência epistémica e social do mundo pensado e marcado pelas experiências e conhecimentos das mulheres, na busca de uma vida abundante e digna para todas e todos. Enfim, possibilita-nos ampliar conhecimentos para ler e captar as tensões e as desigualdades sexistas que existem e persistem e, perscrutar, nesse Sul, que é a metáfora dos conhecimentos nascidos nas lutas, a sua formidável energia de superação e transformação (Khatibi, 2001:36). 

Assim, dialogar com as Epistemologias do Sul e construir ecologias feministas de saberes pressupõe três exercícios principais. O primeiro é conter as nossas memórias e narrativas de emancipação para abrir espaço a outras, porventura divergentes e mal compreendidas por nós. Para tal, é preciso praticar o autosilenciamento para abrir os ouvidos e fechar a boca (Carty; Mohanty, 2015) e colocar em causa a lógica abissal e de banda estreita com que costumamos pensar e escrever (Cunha, 2014); desaprender para poder aprender de novo (Santos, 2014); e a compaixão contra-condescendente (Freire, 1975) para poder ouvir, com redobrada atenção, outras palavras, os silêncios ou os gritos escolhidos com que, muitas mulheres, dão conta da compreensão que têm delas mesmas e dos seus mundos. Trata-se, pois, de ultrapassar qualquer pulsão de elaborar e se apegar a uma qualquer narrativa-mestra de emancipação das mulheres. 

O segundo, é construir uma epistemologia feminista insurgente que rompa com a persistente obsessão colonial que define, reduz e descreve as mulheres, no seu conjunto, através de três características fundamentais: as vítimas, subjugadas pela sua própria incapacidade ou incompetência; as excecionais, capazes de ser como os homens, medida de todas as coisas; e as intocáveis, retidas na incomensurabilidade de divindades separadas radicalmente da vida (Cunha, 2014; 2017). Neste sentido, as ecologias feministas de saberes são buscas plurais, tanto epistémicas quanto políticas de relações sociais que, por diferentes razões, se apresentam livres, ou em processo de libertação, do controlo colonial cognitivo. Este exercício implica, pois, assumir a importância dos conhecimentos que emergem a partir dos escombros provocados pelo colonialismo, em articulação com o capitalismo e o hétero-patriarcado (Mbilinyi, 2015; Carty; Mohanty, 2015), e credibilizar o que neles são, já, prefigurações de descolonização epistemológica e subversão das relações sociais sexistas e de exploração capitalista existentes. 

O terceiro exercício é metodológico. Construir conhecimentos feministas, insurgentes, contextualizados e emancipatórios significa submeter as nossas metodologias a um intenso questionamento crítico que as impeça de prolongar e alimentar a pulsão extractivista e autoritária inscrita na ciência moderna ocidental. Para isso, destacam-se dois conceitos geradores: a ciência como conhecimento de retaguarda (Santos, 2000; 2006; 2008) e a auto- reflexividade como insubmissão (Haraway, 1992; Mama, 2001; Cunha, 2011; 2015). Com o primeiro, vai-se muito para além da oposição positivista entre quem pensa e quem age. Ser-se crítica de retaguarda significa, sobretudo, não se contentar com o que já se sabe e estar apoiando, alimentando, numa relação tensional, mas amorosa, as lutas, as possibilidades, os desafios colocados às ciências sociais ao serviço das transformações sociais pelo máximo de dignidade para todas e todos. A autoreflexividade como insubmissão não é conhecimento per se mas amplia os campos de confrontação e de argumentação porque requer a presença do lugar de enunciação e da emoção. A autoreflexividade permite transitar do trabalho reprodutivo e repetitivo do estado da arte para o trabalho produtivo de construção de conhecimento criativo e inédito porque é um campo de luta pelo poder de interpretar.