CES (com)vida 2020

A luta contra o vírus da precariedade laboral em tempos da pandemia da COVID-19 em Call e Contact Centers em Portugal

Isabel Roque

A Globalização Neoliberal e a expansão do terceiro setor compreenderam novos desafios para o mundo do trabalho através de uma crescente economia de serviços inserida numa sociedade de informação (Webster, 2014). A revolução digital conduziu a uma reorganização do mercado laboral potenciado, sobretudo, através das tecnologias e plataformas digitais com o trabalho geograficamente disperso (Crowd Work), inserido numa economia de prestação de serviços e trabalho autónomo (Gig Economy) (Antunes, 2018). Os call e contact centres emergiram em finais dos anos 80 do século XX, não apenas como uma nova lógica de serviços prestada ao cliente, mas como uma função negocial transversal a várias indústrias.

Em Portugal trabalham cerca de 100 mil operadores de call e contact center que prestam informações e procedem à venda de produtos, bens e serviços através de linhas de apoio ao cliente ou serviços de fornecimento, utilizando plataformas digitais, telefone, email e chat. Trata-se de novas formas de emprego, mas também de exploração laboral, em que os trabalhadores se encontram socialmente desprotegidos, sobretudo devido à escassez da lei laboral específica do setor e que não permite que a profissão de teleoperador seja reconhecida pela Classificação Nacional de Profissões.

Não obstante esta situação de estado de emergência, verificam-se outras situações bastante gravosas relacionadas com a questão da higiene e (in)segurança no trabalho em call e contact centers. O vírus da precariedade laboral é disseminado nos locais de trabalho através da violência psicológica, como o assédio moral, racial e de género, perpetuado sobretudo, pelos clientes agressivos e pelas chefias que concebem o trabalhador como uma mera extensão da máquina. Esta situação possui impactos perversos, conduzindo a doenças do foro psicológico, assim como ao sofrimento mental e desgaste emocional, culminando num elevado número de baixas médicas, dependência de ansiolíticos e despedimentos por incapacidade psicológica.

Em termos de disposição arquitetónica, os call e contact centers poderão encontrar-se instalados em espaços multifacetados, desde garagens, vãos de escada, lojas de shoppings, a arranha-céus, sendo que os edificios localizam-se, sobretudo, nas cidades onde os focos da pandemia causada pela Covid-19 se têm verificado com maior incidência. É de salientar que, na maioria dos casos, não se verifica a existência de infraestruturas adequadas para trabalhadores com mobilizada reduzida, como rampas e elevadores operacionais. O trabalho é geralmente organizado na disposição de open space, sendo a iluminação artificial e/ou insuficiente, e quando se verifica a existência de janelas, as mesmas encontram-se encerradas para isolamento do ruído exterior. Todavia, no que respeita ao ruido interior, o mesmo é excessivo devido ao elevado número de trabalhadores instalados na mesma sala de atendimento, dispostos a escassos metros dos seus colegas, e separados por biombos ou ilhas. Em geral, o posto de atendimento, as cadeiras partidas e/ou desprovidas de design ergonómico, assim como os instrumentos de trabalho (ratos, computadores, auscultadores, écrans, teclado) vão sendo partilhados, mas desprovidos de qualquer ação de limpeza, possibilitando a transmissão de vírus (gripes), doenças de pele, e alergias. Não se verifica igualmente qualquer ajustamento da ventilação à temperatura ambiente, nem limpeza ou substituição dos filtros do ar condicionado, conduzindo a doenças do foro respiratório e pulmonar.

Com a pandemia COVID-19 e a facilidade de transmissão do vírus, estes locais de trabalho potenciaram-se como focos de proliferação do mesmo. Inclusivamente, e na maioria dos casos, verificaram-se situações de escassez de material de limpeza, como máscaras, produtos de desinfeção, como detergentes e álcool gel, e papel higiénico, obrigando a que a limpeza fosse efetuada apenas com água. É de salientar que as empresas de call e contact center tentaram, inclusivamente, omitir a situação de infeção de trabalhadores pela COVID-19, assim como o facto de trabalhadores regressados recentemente do estrangeiro, sobretudo de países onde a pandemia se encontrava mais disseminada, não terem sido sujeitos a qualquer procedimento de quarentena ou isolamento.

Todavia, toda esta situação conduziu a um estado de revolta generalizado em call e contact centers a nível nacional, manifesto num elevado número de faltas ao trabalho, solicitação de pedidos de baixa médica e férias, ou ainda recusa em executar tarefas no próprio local de trabalho, reivindicando a transição imediata para o regime de teletrabalho. Inclusivamente, todas estas situações foram denunciadas pelos trabalhadores aos sindicatos, sobretudo ao Sindicato dos Trabalhadores de Call Center (STCC) que reportou o mesmo aos diferentes grupos parlamentares e solicitou à Direção Geral de Saúde (DGS) e à Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) que procedessem a inspeções sanitárias. Além disso, o STCC convocou uma greve nacional, decorrida entre 24 de março e 5 de abril de 2020, e lançou uma petição online (Calamidade Pública) que contemplava os serviços partilhados que funcionam em open spaces, a fim de que os trabalhadores dos serviços não essenciais ao público transitassem de imediato para o regime de teletrabalho, sem perda de remuneração. Tendo em conta que o trabalho realizado em call e contact centers compreende em si todas as possibilidades de transição para o regime de teletrabalho, e desde que o estado de emergência fora decretado, essa mesma situação deveria ter sido operacionalizada de imediato. A denúncia do STCC aos media nacionais e internacionais, como a Reuters, assim como aos diferentes grupos parlamentares, e a intervenção da DGS e ACT, reforçaram e aceleraram o processo de transição para o regime de teletrabalho.

Segundo Danilo Moreira, Presidente do STCC, os resultados da greve foram bastante positivos para a maioria dos trabalhadores, sendo que esta situação poderia inclusivamente constituir-se como um ponto de viragem, caso a DGS e a ACT procedessem a inspeções regulares, e não apenas em situações de calamidade nacional. No entanto, a transição para o teletrabalho foi efetuada, todavia, sem a disponibilização total de meios técnicos para o trabalhador poder exercer as suas tarefas como a lei obriga. Permanecem ainda questões relacionadas com os gastos inerentes ao trabalhador, assim como a imposição de algumas empresas na instalação de uma webcam em casa do mesmo para controlo do desempenho laboral. Noutro casos, as empresas simplesmente optaram pelo layoff e pela dispensa de trabalhadores que se encontravam em formação e que foram descartados sem qualquer remuneração. Portanto, a exploração laboral em contexto neoliberal constitui-se como uma verdadeira pandemia transversal a todos os setores profissionais, colocando não apenas em causa a vida humana, através das condições de risco inerentes às deficientes condições de higiene e (in)segurança no trabalho, mas também através da ameaça de despedimento eminente e que coloca o trabalhar numa situação de vulnerabilidade e dilema existencial. Como refere Santos (2020), o trabalhador precário opta por morrer de vírus ou opta por morrer de fome, ou seja, o trabalhador opta por ficar em casa e perde parte da sua remuneração e/ou o próprio emprego ou expõe-se ao perigo da contaminação para fins de sobrevivência. Poderão ser estas as condições reais (in)decentes do trabalho que a economia digital continuará a oferecer aos seus trabalhadores, num mundo cada vez mais suscetível à destruição da natureza e, por sua vez, mais suscetível à calamidade pandémica?
 

Antunes, R. (2018) O privilégio da servidão: o novo proletariado dos serviços na era digital. São Paulo: Boitempo.
Webster, F. (2014). Theories of the information society. Routledge.
Santos, B. S. (2020) A Cruel Pedagogia do Vírus. Edições Almedina.