João Rasteiro
pequena oração para uma geografia familiar
Esperava cobrir a terra novamente de júbilo
ser oferenda madura como uma tâmara
imitando a densa voracidade
de uma velha mãe
que intransigente é o arco de si própria
mas tu estarás pomar em fundo
de jarrão verde
dobrado sobre a dilatação das casas acesas
anteriores ao fogo louco da sílaba.
E sei que há um silêncio de primaveras negras
e digo que todo o amor é uma abóbada
de pequenos vulcões
que adormecem junto ao barro
morrendo entre lírios e chuva regeneradora
e vejo o odor maternal
fundir barro e cor
corpos metidos em conchas verdes sob o coração.
Mas tu, ó relâmpago que esmagas a prumo fundo
a luz arrancada das ciladas nocturnas,
ó cometa obscuro atravessado por dentro do milagre?
Do lugar circunscrito às talhas
espero a obra
cega no segredo da traqueia
das mulheres que criam pássaros e trigo
nas cisternas mais fundas
sob o verde puro das laranjeiras
uma ave-maria como uma desmesurada boca viva
uma velha geografia – a força
magnética da criação
dobrada em si mesma por doces lágrimas envelhecidas.
O cântico das pragas
À entrada de um túnel está um homem
com uma bandeira. É para a cobra que
acena, respondendo a um sinal.
Jaime Rocha
É das palavras
que irradia a morte soberana
os lugares sitiados, a blasfémia do silêncio.
Todos morrem nas palavras disponíveis
apenas os corvos tristes
a quem soldaram o bico com prata
suspendem a morte
no branco das túnicas da água visível.
É nesse espaço
onde antes iam os homens sedentos
alimentar a fractura das vísceras
comendo de rastos com as cobras
que a chuva cai geométrica
estilhaçando o alastro das gargantas
que guardam as sílabas com aroma de tílias.
O homem está morto dentro do poema
como a linguagem das antigas escrituras
e é o seu corpo que brilha através do branco.
As cobras emergem do chão
abrigam-se nas túnicas álgidas
e aproximam-se do corpo do homem exposto
iluminadas em sua própria loucura.
Engolem os restos da carne corrompida - mas,
inexplicavelmente poupam-lhe os olhos -, depois,
saboreiam o que lhes vai consumir
para sempre a língua, o coração das entranhas.
O segredo absoluto e divino do extermínio do verbo.
João Rasteiro (Coimbra, 1965). Poeta e ensaísta. Traduziu vários poemas de Harold Alvarado Tenorio, Miro Villar e Juan C. G. Hoyuelos. É sócio da Associação Portuguesa de Escritores, membro dos Conselhos de Editoriais das Revistas Oficina de Poesia (Portugal) e Confraria do Vento (Brasil). Publicados poesia em várias Revistas e Antologias em Portugal, Brasil, Colômbia, Itália e Espanha e possui vários poemas traduzidos para o Espanhol, Italiano, Inglês, Francês e Finlandês. Publicou os livros, A Respiração das Vértebras (Sagesse, 2001), No Centro do Arco (Palimage, 2003), Os Cílios Maternos (Palimage, 2005), O Búzio de Istambul (Palimage, 2008) e Pedro e Inês ou As Madrugadas Esculpidas (Apenas Editora, 2009). Obteve vários prémios, nomeadamente a Segnalazione di Merito no Concurso Internacionale de Poesia: Publio Virgilio Marone(Itália-2003) e o 1º prémio no Concurso de Poesia e Conto: Cinco Povos Cinco Nações, 2004.
Financiamento: | |