Jorge Fragoso
Eles os dois os barcos
Os dois barcos fazem a mesma travessia
ela olhou-o muitas vezes antes da casa
a conversa pela casa como os barcos
a percorrerem a mesma travessia
a mesma ou outra mesmo igual que é
o mesmo ser a mesma igual
os dois barcos a mesma travessia
depois da conversa pela casa
nunca mais os barcos fariam outra travessia
que não a mesma
ela olhou-o algumas vezes
e olhou-o e daí a conversa pela casa
e daí os barcos na mesma travessia
ele tocou-lhe a face com o mesmo carinho
dos barcos a fazerem a mesma travessia
o álcool ardeu dentro dos olhos
ele juntou os dedos diante dos olhos
pensou no álcool e nos barcos
pensou nunca mais dizer a mesma travessia
o mar morreu feito só boca sobre a rocha
e os dois barcos ela e também ele
a fazerem a mesma travessia
de espanto e de medo e de projecção do medo
na mesma tela da mesma travessia
como os barcos
a mesma travessia os dois eles os dois
poucas palavras para dizer
que se amavam
A partir de Robert Duncan em Tribal Memories – Passages 1
Ritos velhos
Sobre o início existe sempre o nevoeiro
como sobre o fruto a oferenda a culpa
e em todas as vestes com que se aparelha
o mundo
voa a pomba
sucede a mulher mãe maternal
a fazer dos filhos pasto de Cronos
e há o sopro feito carne barro verbo
mesmo na ausência da face
o hálito desmedido do pássaro
só metade vertido no corpo absoluto
derrama toda a idade madura
de estrelas
e mares condoídos de espuma
e vento de garras gordas
e mistério enlouquecido na explicação
do tríptico poliédrico e fantasma
Afinal as barcas são simples formulações das mãos
e fazem-se navios na esquina das páginas
da púrpura da espécie
São muitas correntes sobre a garganta
e o alumiar das lágrimas
na religação das águas
Em cada princípio há um verbo
mesmo na crença inerte
da morte demorada da lenda
Jorge Fragoso (Beira, Moçambique, 1956). Licenciado em Filosofia. Participou como poeta representante de Portugal no V Encontro Internacional de Poetas de Coimbra. Livros publicados: Inima, (poesia), Coimbra, A Mar Arte, 1994; O Tempo e o Tédio, (prosa-poética), Viseu, Palimage, 1998; A Fome da Pele, (poesia), Viseu, Palimage, 2004; Rua do Almada (contos), Coimbra, A Mar Arte, 1995 e Dez Horas de Memória (romance), Viseu, Palimage, 1999, traduzido e publicado em Itália, com o título Dieci Ore, Nápoles, NonSoloParole Edizioni, 2006. Participação poética e ensaística dispersa em revistas e colectâneas em Portugal, Espanha e Brasil. Poesia e ensaio publicados na Revista Oficina de Poesia, Coimbra; Revista Palavra em Mutação, Porto; Revista electrónica brasileira Zunái – Revista de Poesia & Debates (www.revistazunai.com.br/). Presente nas antologias de Poesia: “Regresso à Condição”, Viseu, Ut Pictura Poesis, Viseu, ISPV, 2001; Vento – Sombras de Vozes / Viento – Sombra de Voces, Antologia de Poesia Ibérica, Salamanca, Celya, 2004; Isto é Poesia, Fafe, Labirinto, 2004; Cânticos da Fronteira / Cánticos de la Frontera, Salamanca, Trilce Ediciones, 2005; Poesia do Mundo 5, Viseu, Palimage, 2005; Palavras de Vento e de Pedra, Fundão, Município do Fundão, 2006; Habitación de Olvidos, X Encuentro de Poetas Iberoamericanos (Antologia en Homenaje a Álvaro Alves de Faria), Salamanca, EDIFSA, 2007; Poem’arte. Nas Margens da Poesia – III bienal de Silves, Silves, C. M. Silves, 2008.
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