Teses Defendidas

Para lá dos Silenciamentos. Sofrimento mental, integralidade e (im)possibilidades de uma ecologia de cuidados

Cláudia Nogueira

Data de Defesa
25 de Janeiro de 2024
Programa de Doutoramento
Sociologia
Orientação
Pedro Hespanha
Resumo
Apesar de orientações políticas defensoras de um modelo de cuidados de saúde mental de base comunitária e multidisciplinar, o modelo público português continua marcadamente biomédico e hospitalocêntrico, concentrando as suas respostas, quase que exclusivamente, no diagnóstico psiquiátrico, em psicofármacos e em serviços hospitalares. O presente estudo parte do reconhecimento da inequívoca urgência de se caminhar para um novo modelo de cuidados dirigidos ao sofrimento mental; um modelo que, rompendo com os silenciamentos e reducionismos produzidos pelo modelo biomédico hegemónico, se regule pelo ideal ético-político da integralidade e pela promoção de uma efetiva cidadania no cuidado.

Tomando por base a asserção teórica de que a prossecução da integralidade só se torna possível mediante a construção de uma ecologia de cuidados - i.e., reconhecendo a presença de diferentes epistemologias/práticas de cuidado e promovendo um diálogo entre as mesmas -, definiu-se como objetivo geral da pesquisa contribuir para a ampliação do campo de possibilidades de ação no domínio dos cuidados dirigidos ao sofrimento mental, visibilizando: "vozes", explicações/conceções, práticas, racionalidades e formas de cuidar, que, por via da hegemonização biomédica/científica, foram (e continuam a ser) subalternizadas ou até mesmo deslegitimadas enquanto agentes terapêuticos válidos. Mais especificamente, objetivou-se conhecer as condições existentes para a construção desse (novo) modelo ecológico/integral ao nível de serviços públicos de saúde mental, identificando, nesses contextos, quer as condições favoráveis (que se constituem como "sinais de esperança"), quer as condições desfavoráveis (que se constituem como obstáculos). Objetivou-se, ainda, analisar em que medida as pessoas transcendem as respostas de caráter biomédico, mobilizando (alternativa ou simultaneamente) epistemologias/práticas "outras" de cuidado fora do Serviço Nacional de Saúde. A estratégia metodológica consistiu numa combinação de técnicas qualitativas: entrevista em profundidade e pesquisa etnográfica.

A tese privilegiou, enquanto objeto de estudo, a análise de experiências vividas de um conjunto de homens e mulheres (com diagnósticos psiquiátricos), cujas trajetórias passam, em determinado momento, por serviços públicos de saúde mental (serviços hospitalares e Equipa de Saúde Mental Comunitária). Complementarmente, a pesquisa tomou, também, como seu objeto, o estudo aprofundado (etnográfico) de uma das raras Equipas de Saúde Mental Comunitária a operar em Portugal. Decidiu-se estudar esse contexto em virtude de o mesmo se constituir (no âmbito do Plano de Ação para a Reestruturação dos Serviços de Saúde Mental) como a proposta política mais auspiciosa, que, teoricamente, transporta maiores condições de esperança de rutura com o modelo biomédico/hospitalocêntrico atualmente hegemónico.

Numa antecipação muito genérica de alguns dos principais resultados da pesquisa, há que referir que ela aponta para a prevalência de múltiplos obstáculos à construção de um modelo ecológico/integral de cuidados; obstáculos relacionados, em grande medida, com a manutenção de um elevado poder biomédico e com a supremacia de lógicas hospitalares no seio dos serviços públicos de saúde (inclusivamente nos serviços comunitários).

Ao analisar-se aprofundadamente o contexto de uma Equipa de Saúde Mental Comunitária, verificou-se, enquanto elemento contra-hegemónico, protagonizado pelos/as profissionais, um elevado espírito de missão e compromisso com uma visão holística e com a ética do cuidado - facto que nos leva a perspetivar um horizonte de esperança e de possibilidades de transformação no sentido da construção de um modelo ecológico/integral de cuidados. Porém, paradoxalmente, constatou-se o quanto uma forte dependência relativamente ao modelo hospitalar/biomédico pesa no funcionamento dessa Equipa, pela forma como lhe impõe lógicas reducionistas que lhe retiram capacidade de responder holisticamente às necessidades (multidimensionais) das pessoas.

Foram ainda analisadas narrativas de pessoas que, tendo passado por "pesados" processos de biomedicalização/hospitalização psiquiátrica, buscaram, em determinado momento, respostas "outras" de cuidado fora do Serviço Nacional de Saúde. Neste âmbito, um conjunto de epistemologias/práticas "outras" emergiu com grande propriedade e vigor, desvelando resultados emancipatórios que contrariam a ideia de que as "verdadeiras" respostas ao sofrimento mental se situam exclusivamente ao nível da racionalidade científica/biomédica. Olhando as narrativas, claramente se percebe a densidade de possibilidades e potências de cuidado existentes no âmbito dessa diversidade epistemológica (e.g., Arteterapia, Yoga, Naturopatia, Grupo de Suporte de Pares, Hipnoterapia, práticas espirituais/energéticas num Centro Espírita), o que vem corroborar a enorme importância da edificação de uma ecologia de cuidados no campo dos cuidados de saúde.

Palavras-chave: Sofrimento Mental; Integralidade; Ecologia de Cuidados; Diversidade Epistemológica na Saúde; Equipa de Saúde Mental Comunitária