Porque as palavras significam, a Organização Mundial da Saúde instou as autoridades e o público em geral a mudar, em relação às regras para enfrentar a ameaça da COVID-19, a palavra de ordem “distância social” para “distância física”, mas o termo entrara já no vocabulário e não foi possível alterá-lo.
A organização Human Rights in Mental Health-FGIP criou mesmo a campanha “Mind the Gap” – em português, “Atenção à distância” – para recordar que, se a distância física é uma necessidade em tempos de pandemia, os que mais sofrem com a crise atual são muitos daqueles – como os idosos institucionalizados, populações carenciadas imigrantes e refugiados – que mais precisam de contactos sociais.
Não foi o único caso de mau uso das palavras. No início da pandemia, o uso do termo “vírus chinês”, em referência ao facto de os primeiros casos terem aparecido numa cidade da China, causou reações xenófobas contra a comunidade chinesa em vários países, entre os quais Portugal.
Também os números induzem reações. Vale a pena pensar se dar a conhecer, diariamente, o número de mortos não acaba por, de algum modo, banalizar essas mortes, tornando-nos indiferentes a elas? Será que, morto a morto, não se desvaloriza a morte?
Entretanto, ainda a pandemia vinha no adro e já o Inter-Agency Standing Committee, que tutela o trabalho das agências de assistência humanitária, alertava para que o medo e preocupação constante, a incerteza e o stress da população durante o surto de COVID-19 pode levar a consequências de longo prazo nas comunidades, famílias e indivíduos vulneráveis, destacando, entre elas, a possível exaltação do estado emocional, ira e agressão contra governos e trabalhadores da primeira linha e a possível desconfiança em relação às informações dadas pelo governo e outras autoridades. O que não impediu os órgãos de informação de dar voz precisamente a esses estados emocionais e desconfianças, por vezes usados com evidentes intenções políticas.
Curiosamente ou não, as falhas que eram severamente apontadas ao Estado eram perdoadas aos privados, sendo o caso mais exemplar o dos lares de idosos, onde se verificou um número elevado de vítimas mortais, mas em relação aos quais se criticava o Estado, e não a instituição, pela inexistência de planos de contingência.
E, perante este retrato desencantado da cobertura mediática da pandemia, qual é a alternativa?
Só me ocorre uma: criar um jornalismo diferente, que leia / escreva / pense de outra maneira. Que entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade opte pela da responsabilidade, que não exponha factos só porque estão disponíveis, que não use palavras sem refletir sobre o seu significado para quem ouve ou lê, que pondere sobre os efeitos do que noticia no público que vai consumir essa informação.
O que implica, eventualmente, outra forma de pensar não apenas o ensino do Jornalismo (infelizmente, em muitos casos, englobado em cursos de Comunicação Social), mas o próprio ensino da língua (as palavras significam), o hábito de escrever (os caracteres das palavras não se contam, escrevem-se), a opção pela qualidade e não pela quantidade (seja o número de citações em termos académicos ou de likes nas redes sociais), o preocupar-se com informar melhor em vez de informar mais depressa e, finalmente, quebrando o quase monopólio da formação em Comunicação Social/Jornalismo nas redações a favor da interdisciplinaridade que permita que estas tenham especialistas em diversas áreas, aptos a interpretar textos e informações sobre temas diferentes, a aferir ou não da sua verosimilhança, a fazer as perguntas que se impõem.
Como citar: Andringa, Diana (2020), "As palavras significam", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 24.11.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30170. ISBN: 978-989-8847-24-9