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Culpabilização e violência social
Tiago Pires Marques

Desde o início da pandemia de COVID-19, têm sido reportados casos de violência verbal e física contra indivíduos de fenótipo asiático. Apesar de a Organização Mundial da Saúde ter eliminado na designação de novas doenças a referência a lugares, pessoas, animais e ocupações, o novo coronavírus é associado à China – uma associação capitalizada politicamente por líderes como Donald Trump. A produção de notícias falsas amplificadas pelas redes sociais globalizou este fenómeno de estigmatização e a busca de bodes expiatórios. Numa intervenção que passou relativamente despercebida, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas, falou num “tsunami de ódio” dirigido, entre outros, contra os asiáticos. Todas as grandes epidemias produziram fenómenos de bode expiatório, e esta, portanto, não é exceção. Para além do exemplo já mencionado, são ainda observados processos de estigmatização e violência – verbal, física e/ou na forma de abandono – contra idosos, refugiados, moradores de bairros periféricos e de favelas, população LGBTQ e minorias étnicas e religiosas. O caso mais grave parece ser o da Índia, com perseguições violentas contra muçulmanos, aos quais se atribui a disseminação da epidemia.   

Nas respostas aos fenómenos de bode expiatório, podemos considerar duas frentes: a prevenção e a proteção. E, em cada uma destas, diferentes planos, já que este tipo de culpabilização reflete estruturas sociais, configurações político-culturais e circunstâncias.

O eixo da prevenção envolve, de forma mais acentuada, a dimensão estrutural, uma vez que as sociedades mais desiguais na distribuição de poder, riqueza e capital simbólico são as mais suscetíveis à formação de bodes expiatórios. Assim, a redução das desigualdades é uma condição necessária à eliminação destes fenómenos. A prevenção requer também a tomada de medidas no plano político-cultural: a expansão dos direitos humanos a todas as pessoas, independentemente da sua posição social, assim como das suas diferenças relativamente aos grupos dominantes, é igualmente fundamental. Não basta a afirmação de direitos universais, tem de haver um combate ativo a todas as formas de exclusão de indivíduos e grupos do campo de aplicação dos direitos humanos. Talvez seja mesmo essencial repensar as noções de direitos – pois inscrevem-se numa lógica de condições de acesso – e de humanidade – já que esta transporta a possibilidade de uma não-humanidade, atribuível a um outro. Finalmente, é necessária uma atitude de vigilância em relação a sinais precoces de formação de bodes expiatórios, por meio de intervenções pedagógicas e de promoção da literacia cultural e sanitária junto das populações e de públicos-alvo. Autoridades, media e professores/as têm neste âmbito uma função particularmente importante.

A proteção das vítimas exige um amplo reconhecimento do problema e a promoção de instituições e atitudes de hospitalidade e solidariedade. Esta é uma função que cumpre aos Estados e às organizações intergovernamentais. É fundamental dignificar a condição de refugiado/a, promovendo a hospitalidade e a solidariedade como valores, e mesmo como deveres, de sociedades plenamente desenvolvidas; e criando condições político-jurídicas e materiais que garantam a dignidade dos refugiados. O serviço social, as instituições de saúde, as polícias, as escolas e universidades, as igrejas, as instituições culturais e os atores económicos, todos devem ser chamados a reforçar a cultura política da solidariedade.



Como citar:
Marques, Tiago Pires (2020), "Culpabilização e violência social", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 28.03.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30498. ISBN: 978-989-8847-24-9