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Crises humanitárias
Daniela Nascimento

A declaração de pandemia pela Organização Mundial da Saúde em março de 2020 teve um impacto muito negativo nas crises humanitárias que já existiam e que se viram agravadas pelas prioridades ditadas pela urgência de uma resposta por parte dos governos. O contexto de combate global à pandemia de COVID-19 deixou milhões de vítimas de crises humanitárias numa situação de ainda maior vulnerabilidade. Não apenas ao nível da sua proteção face à propagação do vírus – em virtude de uma enorme precariedade e fragilidade em termos de condições de saúde e higiene de base em que se encontram e que as torna muito mais propensas à infeção –, mas também porque essa negligência se materializou numa ainda maior redução do financiamento e apoio a estas crises, nomeadamente ao nível dos montantes de ajuda humanitária e de emergência.

A maioria das vítimas de crises humanitárias, resultantes de conflitos violentos, catástrofes naturais ou alterações climáticas, vive atualmente em países muito pobres, desafiados pelas altas taxas de má nutrição, pelos níveis baixos de imunidade e pela imensa vulnerabilidade a uma multiplicidade de doenças crónicas e/ou altamente infeciosas, combinadas com dificuldades acrescidas em termos de acesso a direitos económicos e sociais básicos como cuidados de saúde, acesso a alimentação, a habitação, por exemplo. Desde os campos de refugiados na Grécia, aos deslocados internos e vítimas do conflito armado no Iémen ou no Mali, passando pelos milhões de venezuelanos afetados por uma crise económica e humanitária que se arrasta há anos em virtude de instabilidade política, o impacto da pandemia revela-se devastador. Para os cerca de 25 milhões de refugiados no mundo, dependentes de ajuda internacional, não só os orçamentos são cada vez mais limitados, como na maior parte dos países que os acolhem não existem planos concretos para lidar e combater a pandemia e responder às necessidades muito específicas dos que são já, à partida, mais vulneráveis.

Neste contexto, a alternativa deve passar por um combate à pandemia através de ações, políticas e medidas concretas, inclusivas e direcionadas às múltiplas necessidades e vulnerabilidades das vítimas destas crises. Tal pressupõe a assunção e o respeito pelos mais básicos princípios humanistas e solidários com todos, independentemente da sua condição, origem ou situação particular. É um desafio complexo, que obriga a um olhar mais atento a estas realidades de vulnerabilidade crescente, e a um compromisso e vontade políticos sérios por parte daqueles a quem cabem as mais importantes decisões ao nível do sistema internacional de ajuda. Mas também uma sociedade civil mobilizada e atenta a estas outras necessidades, mesmo que mais distantes.

Exige, pois, uma posição clara que olhe às necessidades reais e não a agendas económicas e/ou geopolíticas divisivas, excludentes e (re)produtoras de desigualdades e vulnerabilidades. Implica maior e melhor disponibilidade de equipamentos e recursos médicos para tratar os infetados, de infraestruturas de acesso a água e saneamento básicos essenciais à higienização destas comunidades e, sobretudo, de um apoio humanitário reforçado nas comunidades assoladas por crises humanitárias que mais necessitam desta ajuda. Tal como afirmou o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, é verdade que a COVID-19 ameaça toda a humanidade sem distinção e é essencial que a humanidade o combata com todas as forças e capacidades. A alternativa tem de passar por não ignorar os “ultravulneráveis”, os milhões de pessoas que dependem de ajuda e que não podem ser abandonadas sob pena de esquecermos, com elas, o que é a solidariedade.



Como citar:
Nascimento, Daniela (2020), "Crises humanitárias", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 28.03.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30266. ISBN: 978-989-8847-24-9