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Reformas da Justiça
Conceição Gomes

As marcas da governação neoliberal que têm orientado as políticas públicas – com especial ênfase no período de vinculação aos objetivos do Memorando de Entendimento assinado entre o Estado português, por um lado, e o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional (Troika), por outro –, tiveram também forte impacto no campo da justiça. A eficiência associada à produtividade, centrada na produção quantitativa e na avaliação parametrizada, a tendência de substituição dos fundamentos de uma cidadania judicial por uma racionalidade de custo-benefício na mobilização dos tribunais, o foco na resposta à quantidade e à morosidade, procurando sobretudo a diminuição do volume de processos entrados e pendentes largamente dominados por ações para a cobrança de dívida mobilizadas por empresas, são objetivos que têm orientado, nas últimas duas décadas, os vários tipos de reformas. Associa-se-lhes um modelo de intervenção dominado por reformas avulsas. Sem avaliações metodologicamente credíveis, as alterações legais e as experiências sucedem-se, não só ao ritmo dos governos, mas dentro da própria legislatura, empurrando o setor da justiça para uma permanente situação de reforma sobre reforma. Apesar delas, a perceção é de imobilismo no sistema de justiça disfarçado de mudança no que respeita ao aprofundamento da cidadania e da qualidade no desempenho funcional dos tribunais, condicionando fortemente o padrão conflitual de mobilização dos tribunais.

O padrão reformista não foi capaz de alterar significativamente a estabilidade estrutural-funcional do sistema judicial na resposta à violação de direitos humanos e fundamentais e de interesses legítimos dos cidadãos, às velhas e novas vulnerabilidades sociais, não dando sinais de especial sensibilidade às “urgências sociais”, como é o caso da violência doméstica, das muitas violências contra as crianças ou dos acidentados do trabalho. A reconfiguração do papel dos tribunais depende muito da capacidade de regeneração dos modelos de construção e execução das políticas públicas. É, por isso, fundamental desenvolver uma agenda estratégica de reforma da Justiça, cujo eixo central seja a cidadania e a qualidade da justiça. Salientam-se, nessa agenda, quatro linhas orientadoras: i) reforço dos mecanismos de transparência e de prestação de contas (interna e externa) do judiciário, que permitiam diminuir a opacidade e a distância social do sistema de justiça e que facilitem o escrutínio público do desempenho funcional dos tribunais; ii) compreensão efetiva da dimensão multi-institucional e multidisciplinar da ação dos tribunais, criando modelos colaborativos de comunicação e articulação eficazes; iii) reforma profunda no ensino do direito e na formação profissional dos atores judiciais, que permita criar uma cultura judiciária indutora de mudanças democráticas; iv) efetivação do princípio constitucional do direito de acesso à justiça, por parte de todos os cidadãos, sem quaisquer exclusões, sejam elas de natureza cultural, social ou económica.



Como citar:
Gomes, Conceição (2020), "Reformas da Justiça", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 24.04.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30398. ISBN: 978-989-8847-24-9