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Interesses privados, custos sociais
Vítor Neves

Em Portugal, e de uma forma generalizada à escala global, a economia tem-se vindo a estruturar em torno de arranjos institucionais assentes na lógica do dinheiro e da busca do lucro empresarial. Cada vez mais, a pessoa humana, o bem comum e a perspetiva do desenvolvimento humano sustentável são sacrificados à prossecução dos interesses privados e as pessoas, quais trabalhadores chaplinianos dos Tempos Modernos, transformadas em peças de uma máquina cuja lógica inexorável as ultrapassa. O capitalismo neoliberal tem vindo a acentuar esta lógica (o inadequadamente designado “economicismo”), conduzindo a uma progressiva generalização do mercado a todas as esferas da vida. A lógica dos interesses privados e do mercado impõe-se também nas áreas em tempos consideradas não mercantis: na saúde, nas áreas do cuidado, na investigação científica, na organização do trabalho, das cidades e do sistema de transportes. Tempo é dinheiro; a vida humana é reduzida a um valor estatístico; a proteção do meio ambiente e a sustentabilidade da vida constituem um custo que se tem de confrontar com o do sacrifício do modo presente de organização da vida social. Capturados por esta lógica, os Estados de bem-estar social esboroam-se. O resultado é um desfasamento crescente entre o que a sociedade legitimamente espera da economia e o que ela realmente obtém – os chamados “custos sociais” do capitalismo. Quem vai pagar estes custos?

O problema dos custos sociais do capitalismo pode ser colocado a diferentes níveis. Desde logo, o dos arranjos institucionais que os geram. Mas também das ideias que subjazem a tais arranjos e que os sustentam. A alternativa constrói-se em ambos os planos. Os custos sociais decorrem de uma lógica específica que importa desconstruir: a de que os mercados ditam o valor das coisas, das pessoas e da vida. É preciso romper com a ideia de racionalidade económica assente na contabilidade mercantil e discutir os critérios de valoração económica: a incomensurabilidade dos valores e os limites do cálculo monetário; a inadequação da eficiência e do crescimento económico, medido com base no Produto Interno Bruto, como critérios de avaliação do desempenho da economia; a importância de uma nova contabilidade social. E é fundamental resgatar a pessoa e a sustentabilidade da vida como critérios últimos de valoração de todas as políticas. Implica o regresso da economia (como ciência e como prática) à ética e o pensar a economia e a política em termos de justiça social e solidariedade. Saber quem paga os custos sociais do capitalismo convoca-nos, em última análise, para a discussão de um novo modelo de desenvolvimento, cidadania e participação democrática. Este exige novas formas de pensar o “económico” e o fomento do que Amartya Sen designou como “capacidades” (ou “capacitações”) – a criação das condições para que as pessoas se possam realizar plenamente e construírem um outro futuro.



Como citar:
Neves, Vítor (2020), "Interesses privados, custos sociais", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 24.11.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30472. ISBN: 978-989-8847-24-9