A partir dos anos 1980 a onda global de privatização dos bens sociais colectivos – tal como a saúde, a educação, a água canalizada, a electricidade, os serviços de correios e telecomunicações e a segurança social – foram apenas a manifestação mais visível da prioridade dada à mercantilização da vida colectiva. O próprio Estado e a sociedade civil passaram a ser geridos e avaliados pela lógica do mercado e por critérios de rentabilidade do capital. A crescente promiscuidade entre o poder económico e o poder político foi reconfigurando a prática e as políticas do Estado e, com isso, a imagem que os cidadãos foram construindo sobre o Estado. Apesar das imensas diferenças de país para país, foram-se notando algumas transições epocais: do Estado de bem-estar para o Estado de mal-estar, do Estado protector para o Estado repressivo, da regulação estatal da economia para a regulação económica do Estado. Estas transições ocorreram ao mesmo tempo que se promoveu a democracia liberal como único regime político internacionalmente legítimo. A pandemia do novo coronavírus veio mostrar de maneira particularmente vincada duas realidades dissonantes. Por um lado, os Estados foram convocados a proteger os cidadãos das consequências sanitárias, sociais e económicas da pandemia. Não se tratou de uma escolha dos cidadãos, tratou-se do recurso à única instância existente. Por outro lado, quando a pandemia eclodiu, no início de 2020, a maioria dos Estados estavam totalmente despreparados para enfrentá-la e, portanto, para proteger os cidadãos.
A crescente tensão e até incompatibilidade entre as necessidades de acumulação de capital e o regime político tendencialmente dominado pela opinião da maioria fez com que a democracia fosse sofrendo sucessivos entorses, conduzindo ao que designei por democracias de baixa intensidade. A pandemia veio dramatizar dois imperativos principais. O primeiro, mais urgente, é a alteração na lógica económica e política subjacente às políticas públicas (saúde, educação, pensões, direitos dos trabalhadores, infra-estruturas). Não são custos, são investimentos no bem-estar das populações que serão cada vez mais atingidas por acontecimentos extremos. O segundo imperativo, de médio prazo, é a reforma do sistema político de modo a complementar a democracia representativa com a democracia participativa. A crescente incompatibilidade entre as necessidades de acumulação e os governos de maiorias está a distorcer e a capturar a democracia representativa. Isto só pode ser superado mediante políticas de orientação anticapitalista, anti-racista e anti-sexista suportadas por cidadãos e cidadãs politicamente organizadas em formas de democracia participativa, em complementaridade autónoma com os partidos políticos e democracia representativa. A prazo, estes devem transformar-se em partidos-movimento com controles de cidadania sobre as oligarquias partidárias.
* Por vontade do autor, este texto não segue as regras do Acordo Ortográfico de 1990.
Como citar: Santos, Boaventura de Sousa (2020), "Desafios à democracia: estado de emergência em tempo de pandemia intermitente", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 24.11.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30432. ISBN: 978-989-8847-24-9