A intensificação da globalização capitalista – promovida pelas políticas neoliberais dominantes a partir de finais dos anos 1970 em diante –, esteve associada à erosão da democracia pela chantagem crescente do capital mais móvel, ao aumento das desigualdades sociais, à crise ambiental cada vez mais visível, ou à multiplicação das crises financeiras num sistema progressivamente mais opaco, interligado e, por isso, politicamente mais difícil de gerir.
Visto de Portugal, a globalização erodiu também as capacidades produtivas nacionais, diminuindo o grau de autossuficiência nacional em muitas áreas que hoje se revelam cruciais. Graças à liberalização comercial e financeira, o país foi exposto a uma concorrência internacional acrescida, sem dispor de instrumentos de política para contrariar a dependência externa manifestada, por exemplo, num endividamento externo sem precedentes. Confirmou-se, uma vez mais, que o comércio livre é o protecionismo dos mais fortes.
A globalização deu origem a uma ideologia – o globalismo – que a declara irreversível e que só alinha pelo diapasão das soluções na escala global, ou seja, na escala da impotência democrática.
A crise pandémica veio revelar de forma mais clara a necessidade de reverter o processo de globalização, já que esta foi um poderoso veículo de difusão da COVID-19, revelando o preço que se paga por se depender de cadeias de produção ditas globais para bens cruciais, ou por se permitir uma mobilidade insana de pessoas em busca de negócios ou de lazer.
Desglobalizar é o verbo de um processo de aumento do controlo por parte dos Estados em relação à circulação internacional de fatores, tornando as economias nacionais menos interdependentes, e logo menos vulneráveis, até porque mais facilmente acomodáveis a um planeamento vital por razões de segurança, de defesa do emprego ou de sustentabilidade ambiental.
De facto, não será possível esconjurar as catástrofes eminentes sem reduzir a extensão das cadeias de produção, sem favorecer a produção de proximidade, sem incrustar a economia em territórios democraticamente delimitados. E não se consegue fazer isto sem instrumentos de política – do protecionismo seletivo ao controlo à entrada e saída de capitais. Historicamente, estes instrumentos foram, e são ainda, usados para guiar as economias para formas mais nacionais e autossuficientes e logo mais sustentáveis económica e ambientalmente e menos expostas a crises.
Estes instrumentos são ainda decisivos para atenuar o poder estrutural do capital, desta forma menos móvel e menos capaz de chantagear os Estados, organizando corridas para o fundo em matéria de redistribuição ou de regulação conforme ao interesse público democrático, em particular no que diz respeito às sempre decisivas relações laborais.
Desglobalizar vai obrigar a um desmantelamento de todo um acervo de tratados e instituições internacionais que serviram, e continuam a servir, para trancar as vantagens das frações mais extrovertidas do capital. Só assim se pode almejar um sistema mais justo, sustentável e democrático.
Como citar: Rodrigues, João (2020), "Desglobalizar", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 14.12.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30429. ISBN: 978-989-8847-24-9