O choque provocado pela pandemia de COVID-19 e a necessidade de estabilizar as economias nacionais forçaram os governos de todo o mundo a tomar medidas extraordinárias e, também assim, a incorrer em défices com precedentes apenas em períodos de guerra. As dívidas públicas atingiram assim novos máximos históricos.
Num contexto em que o Fundo Monetário Internacional prevê que, em 2021, a dívida pública das economias mais avançadas atinja os 120% do Produto Interno Bruto, o debate acerca da sustentabilidade deste endividamento tornou-se incontornável. E não falta quem argumente que Estados sem dinheiro serão inevitavelmente confrontados pelos mercados financeiros privados, que não deixarão de exigir remunerações mais elevadas ao financiamento desta parcela adicional de endividamento, o que acabará por resultar na necessidade de imposição de medidas de austeridade ao setor privado. Mas será assim?
Para um Estado monetariamente soberano, que emite a sua própria moeda, o dinheiro não é um recurso escasso. A principal restrição aos défices orçamentais é a inflação, mas, numa situação histórica como esta, em que o perigo é a deflação, aquela preocupação é extemporânea.
Uma das características diferenciadoras de um regime monetário neoliberal – talvez a mais importante de todas – é a autoimposição, política e institucionalmente construída, da subordinação creditícia do Estado soberano. Estado que concede o monopólio da emissão monetária, hoje inteiramente fiduciária e dependente da sua força legal, a um banco central e, simultaneamente, se exclui da possibilidade de, junto deste, se financiar diretamente, colocando-se, assim, por escolha, na dependência dos mercados financeiros privados.
Este distópico regime monetário tem beneficiado de uma laboriosamente produzida opacidade, assente em mecanismos que só aparentemente são complexos, para fabricar a subordinação do Estado a interesses particulares e lhes permitir uma injustificada extração de valor.
Contudo, uma sociedade pode sempre pagar o que pode produzir. Enquanto houver desemprego, o Estado pode e deve garantir trabalho. O valor do que é produzido por quem tem acesso a um novo posto de trabalho é a garantia de que é possível pagar-lhe.
Recentemente tornou-se público que o Banco de Inglaterra vai financiar diretamente a política orçamental do Reino Unido. Nada de novo. Trata-se apenas da enésima demonstração de que um Estado monetariamente soberano não necessita dos mercados privados para se financiar numa moeda que ele próprio emite.
Não podemos esquecê-lo nos tempos difíceis que se avizinham.
O tabu da independência da política monetária deve dar lugar à ação articulada de tesouros nacionais e bancos centrais mandatados com o duplo objetivo do pleno emprego e da estabilidade de preços. E o Tesouro deve, a cada momento, poder decidir se se financia nos mercados financeiros privados ou diretamente no banco central e, assim, se a esse financiamento corresponde, ou não, dívida pública. E os governos devem responder por estas opções em eleições.
Como citar: Coimbra, Paulo Alexandre Chaves (2020), "Financiamento", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 24.11.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30421. ISBN: 978-989-8847-24-9