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Ficar em casa
António Olaio

Dizer que um artista é um indivíduo parece, obviamente, uma afirmação desnecessária, porque todos sabemos que sim, todos os indivíduos o são, independentemente do que fazem ou escolhem fazer. Um indivíduo é um indivíduo. Mas um artista exerce, enquanto artista, essa condição, faz, dessa condição, obra. Mais do que na procura do que isso quererá dizer, o que o tornaria um filósofo que não é. Embora se possa aproximar da filosofia, no caminho que percorre ao fazer arte, passa por ela e continua a andar.

O artista sobretudo torna imagem a experiência de ser um indivíduo, a experiência e a reflexão sobre essa condição. Uma experiência que se exerce e se pensa ao exercê-la. Uma experiência da latitude e da plasticidade do espaço que configura a dinâmica de ser e, ao mesmo tempo, a consciência de ser para além do tempo. Percebendo que um indivíduo é a relação com todas as coisas para além de si, todas as coisas que, sendo o espaço negativo do seu corpo e da sua identidade, o moldam.

Nesta condição, vê assim dilatado o tempo para estar consigo mesmo nesta situação de reclusão, vê densificada a consciência de si. Se for artista, fará mais arte certamente. E, deixado a si mesmo, sabe que não aumentará a consciência de uma singularidade. Antes pelo contrário. Como já sabia, o que se densifica é a consciência de ser outro, a condição de ser, definida pela possibilidade de ser um outro qualquer. Porque o interior está para além da pele, porque se forma e manifesta em relação.

Deixado a si mesmo, um indivíduo, intensificando a perceção de si, intensifica a expectativa da presença do outro. Nessa ausência, fica mais tempo perante o que já saberia: que o outro faz parte de si. Ou, melhor, que é na relação com o outro que se define a si próprio e, ao mesmo tempo, que o reconhecer-se a si próprio não tem assim tanta importância. Porque o próprio indivíduo é alguém por onde se passa quando se pensa em si. E um indivíduo é, sendo sempre outra coisa, condição de se ser. E está em casa como se estivesse consigo, num corpo que se expande no que reconhecemos como casa, casa que terá começado a sê-lo quando deixou de se estranhar. Tendo nela aquilo de que precisa, e o que precisa para além das coisas que mais facilmente associamos à utilidade.

E lembramo-nos que a casa, ao longo do tempo, cada vez mais assume a sua condição de casa. Mas, à semelhança de em que consiste ser um indivíduo, a casa é uma casa ao superar-se. Por isso temos paredes que, mais do que criar divisões, para termos quartos, salas, cozinhas, casa de banho... servem para pôr coisas, para pendurar coisas de forma a parecer que estas pertencem às paredes. Imagens que desmaterializam as paredes, que as levam para outros lugares, para outros.



Como citar:
Olaio, António (2020), "Ficar em casa", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 25.04.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30117. ISBN: 978-989-8847-24-9