Em expressões correntes como “a violência da pandemia” ou “a violência da natureza”, o conceito de violência está, evidentemente, a ser utilizado em sentido impróprio. A violência é um facto social e um dado sociológico – em sentido estrito, só existe violência no âmbito de relações entre indivíduos e grupos radicadas em contextos sociais específicos. Ora, se há, presentemente, um elemento de consenso generalizado nos estudos sobre a violência, ele está na percepção de que só um entendimento amplo poderá abarcar as dimensões multifacetadas do conceito – qualquer definição demasiado estreita facilmente se torna cega, pela incapacidade de nomear a diversidade das manifestações da violência, muitas vezes microssociológicas, intersticiais, e de modo nenhum limitadas à agressão ou à violência física directa.
O contexto da crise pandémica é propício ao recrudescer da violência sob múltiplas formas: em casos de violência doméstica, por exemplo, o confinamento pode tornar-se uma armadilha mortal para a vítima pelo agravamento das condições de coabitação forçada com a parte agressora; formas correntes de exclusão violenta de grupos definidos como diferentes, como o racismo e a xenofobia, encontram condições propícias para um agravamento radical, ressuscitando fantasias que transformam “o outro” numa ameaça, senão a eliminar, pelo menos a acantonar e controlar, se necessário pela força; noutro pólo, a “emergência sanitária” serve de argumento para alargar os poderes do Estado e impor formas de coerção e disciplina social tendencialmente indiferentes a lógicas de decisão democrática.
Mas também noutro aspecto o contexto de crise torna manifestas certas dimensões sociais da violência muitas vezes silenciadas. Johan Galtung cunhou o conceito de “violência estrutural” para definir as situações em que, por motivos diversos, mas, à cabeça, por motivos económicos – o desemprego, os baixos salários, a distribuição desigual de rendimentos – o ser humano é impedido de desenvolver o potencial inerente à sua condição de humanidade. Está à vista que, para quem foi forçado a viver o confinamento em habitações minúsculas e degradadas, ou numa situação de mobilidade forçada, por exemplo, na condição de refugiado, a “violência da pandemia” é, no essencial, uma violência social, radicada em relações desiguais de poder.
O equívoco mais manifesto de percepções correntes da violência está em ver nesta uma constante antropológica, de acordo com a qual, o ser humano seria “estruturalmente violento”. É indispensável contrapor a esta noção a consciência de que a violência é sempre uma construção social e que, por conseguinte, ela não constitui uma fatalidade inescapável, pelo contrário, pode ser combatida nas suas causas. Em tempo de crise, que, como todas as crises, contém um momento de oportunidade, radicar esta percepção na consciência pública constitui um acto fundamental de resistência.
* Por vontade do autor, este texto não segue as regras do Acordo Ortográfico de 1990.
Como citar: Ribeiro, António Sousa (2020), "A violência em tempos de pandemia", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 21.11.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30379. ISBN: 978-989-8847-24-9