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Violência nas relações de intimidade
Madalena Duarte

A agudização do contexto de risco suscitado pela pandemia de COVID-19 trouxe a necessidade de confinamento social e propagou-se, por todo o mundo, a mensagem “Fica em casa”, apelando ao espaço íntimo como ideal de segurança pessoal. Contudo, para muitas pessoas, na sua maioria mulheres, o receio do espaço público pelo risco sanitário é concorrente (ou suplantado) pelo medo do espaço privado, onde a violência corrompe o imaginário de intimidade e proteção. O aumento das denúncias de violência doméstica em alguns países durante o período de confinamento social causou alarme social e obrigou à tomada de medidas urgentes, nomeadamente de reforço dos serviços de apoio às vítimas. Contudo, a indispensabilidade destas medidas não deve evitar que questionemos o paradigma mais amplo, senão de combate, pelo menos de resposta às situações de violência nas relações de intimidade. O contexto pandémico evidencia que não basta adaptar as respostas e serviços já existentes a um contexto virtual e de emergência para fazer face a essa realidade; é necessária uma reflexão crítica e feminista acerca das políticas dirigidas a este tipo de violência. Não podemos esquecer que: (i) muitas destas mulheres já se encontravam em situação de isolamento social; (ii) a pandemia vem reforçar um contexto previamente marcado pela precariedade e pela desigualdade de género em várias esferas da vida social, o que fomenta a violência; (iii) as mulheres vítimas de violência experienciam, simultaneamente, diferentes formas de opressão e de controlo social, uma vez que estão imersas em contextos sociais onde o patriarcado se cruza com outros sistemas de poder que as fragilizam, como o colonialismo e o capitalismo. Temos, pois, o cruzamento entre um cenário estrutural, produzido ativamente pelo patriarcado, e um contexto ocasional, mas de emergência, provocado pela pandemia que pode intensificar as situações de abuso.

Para as vítimas de violência, ao contrário do que é prometido a todos/as nós, o final da pandemia não permite o regresso à normalidade, pelo que as medidas a adotar neste âmbito devem ser dirigidas igualmente às condições e processos que contribuem para a sua vulnerabilização quotidiana: (i) a prevenção primária deve continuar a ser uma prioridade; (ii) as medidas devem ser capacitadoras e permitir que o lar seja, efetivamente, um espaço de segurança, devendo combater-se ativamente a ideia, disseminada na sociedade e na arena legal, de que a mulher deve sair de casa para escapar à violência; (iii) além disso, as medidas devem ter em conta a situação económica das mulheres pré e pós-pandemia e reforçar a sua posição no mercado de trabalho, valorizando as suas múltiplas funções; (iv) tal como o que está a ser feito em relação à pandemia, também no âmbito da violência é necessário um olhar interseccional sobre as suas causas e impactos nas vidas das mulheres.

A pandemia atual tem-se revelado particularmente grave para as mulheres mais velhas e de classes sociais mais baixas. Mas, também as mulheres imigrantes, refugiadas, de minorias étnicas e culturais, de orientações sexuais não normativas, entre muitas outras, se encontram mais nas margens da sociedade. Se tal é preocupante em contextos de paz social, política e económica, é-o ainda mais numa altura crítica como a que vivemos presentemente.



Como citar:
Duarte, Madalena (2020), "Violência nas relações de intimidade", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 24.04.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30502. ISBN: 978-989-8847-24-9