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Desigualdades e habitação
Ana Cordeiro Santos

A crise pandémica tornou evidente a centralidade da habitação na reprodução de desigualdades, espaciais, socioeconómicas, étnicas, de género ou geracionais. Em Portugal, este efeito reprodutor de desigualdades foi exacerbado pela inexistência de um parque habitacional público robusto. Em resultado, durante a pandemia de COVID-19, nem todos os cidadãos tiveram condições de cumprir de forma adequada as recomendações de saúde pública, de ficar em casa, porque não a tinham ou, de isolamento social, porque viviam em bairros densamente povoados ou em alojamentos sobrelotados. Por sua vez, a disparidade das condições habitacionais tornou o confinamento uma experiência muito variada. A dos residentes em moradias de luxo com amplos espaços exteriores foi muito distinta da dos imigrantes residentes em pensões do centro de Lisboa, muitos sem direitos de cidadania, ou dos moradores de bairros sociais degradados, que concentram os estratos da população mais vulneráveis. As medidas de emergência, como o acolhimento das pessoas sem abrigo, a suspensão dos despejos, o prolongamento automático dos contratos de arrendamento, ou as moratórias nos créditos à habitação, atestam da relevância da habitação para a proteção dos cidadãos e da comunidade. Mas estas medidas são de curto prazo, remediando, sem resolver, o problema de fundo.

É necessário desenvolver medidas de médio e longo prazo, porque muito do direito à habitação ainda está por concretizar em Portugal. Há um conjunto de medidas que urge implementar. O regime de arrendamento urbano deve ser revisto, contemplando a definição de mínimos decentes para a duração dos contratos e de valores máximos comportáveis para os valores das rendas. Os estímulos, fiscais entre outros, que têm alimentado a especulação imobiliária, devem ser extintos, podendo ser canalizados para apoiar formas desmercadorizadas de provisão, estimulando, por exemplo, a participação de cooperativas ou de associações de moradores. E dever-se-á expandir o diminuto parque público de habitação, erigindo-se, por fim, um Serviço Nacional de Habitação, que permita o acesso à habitação com rendas ajustadas aos rendimentos das famílias. Para o efeito, dever-se-á privilegiar o edificado existente, reabilitando património público ou adquirindo imóveis privados devolutos ou vagos. O parque habitacional público deverá ser de qualidade, do ponto de vista da construção, da dimensão dos alojamentos ou do desempenho energético. Este deverá ainda integrar-se na malha urbana e incluir espaços públicos e equipamentos coletivos que contribuam para o bem-estar dos residentes. Esta requalificação do edificado e do espaço público permitirá não só colmatar uma lacuna grave numa área crucial da provisão social, mas também dinamizar as economias locais em tempo de crise, criando emprego e gerando rendimento. Se a habitação é um mecanismo reprodutor de desigualdades, ela também é parte fundamental da solução do combate às desigualdades.



Como citar:
Santos, Ana Cordeiro (2020), "Desigualdades e habitação", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 21.11.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30270. ISBN: 978-989-8847-24-9