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Cadeias de valor globais
José Castro Caldas

O conceito de cadeia de valor foi cunhado por Michael Porter na década de 1980 para designar o encadeamento de atividades no interior de uma organização produtiva –  uma organização produtiva reticular, decomposta em módulos que transformam inputs vindos do exterior ou de outros módulos, em outputs fornecidos a jusante ao longo das ligações de um processo (cadeia) em que cada módulo vai acrescentando valor aos inputs recebidos. Com a adoção pelas organizações produtivas, como estratégia de flexibilização e redução de custos, da subcontratação a outras organizações de serviços e produtos anteriormente atribuídos a módulos das cadeias de valor internas, a cadeia de valor concebida numa perspetiva intraorganizacional, revelou-se operativa para designar processos similares em curso no espaço relacional das organizações produtivas. Por fim, quando as cadeias de valor interorganizacionais foram perdendo a base territorial para estender a sua abrangência a múltiplas jurisdições nacionais, como parte do processo comumente designado de globalização, ao conceito de cadeia de valor foi acrescentado o adjetivo global.

Anteriormente incensadas pelas visões globalistas como portadoras de prosperidade a países “emergentes” e garantes de provisão a baixo preço nos restantes, as cadeias de valor globais (CVG), manifestaram-se no contexto da crise pandémica de COVID-19, mesmo para muitos dos seus anteriores promotores, como um problema. Face ao avanço da pandemia, os Estados Unidos da América (EUA) e países da União Europeia (UE) encontram-se subitamente privados de bens finais e de consumo intermédio essenciais na área dos cuidados de saúde e dependentes de fornecimento externo. O resultado foi uma reviravolta súbita dos princípios livre-cambistas para os de autossuficiência estratégica. Uma das conclusões apresentadas pelo Presidente do Conselho Europeu a 23 de abril de 2020 formula de forma lapidar os termos dessa inflexão: “É de suprema importância aumentar a autonomia estratégica da União e produzir bens essenciais na Europa”.

Na realidade, a vulnerabilidade das CVG já se vinha manifestando anteriormente à crise pandémica. A operação expedita destas cadeias depende de uma ordem internacional caracterizada pelo desimpedimento dos fluxos de capitais, mercadorias e pessoas e pela segurança jurídica dos contratos e dos direitos de propriedade intelectual. As tensões no triângulo EUA-UE-China, que haviam assumido em alguns momentos proporções de guerra comercial, são claros precursores de uma crise nas CVG, agora manifesta na forma de fratura exposta. 

As respostas discursivas e práticas à crise das CVG – as alternativas em presença – assumem duas modalidades. A primeira esboçada pela UE consiste na territorialização de parte da produção, nomeadamente industrial, à escala da própria União, num movimento de regresso de “campeões”, desta vez não nacionais mas europeus, que pela sua escala poderiam não só abastecer eficientemente o mercado interno como competir à escala global. A segunda é uma territorialização genuína a várias escalas – com ênfase na nacional, regional e local – orientada para a suficiência de abastecimento e a substituição dos ciclos transcontinentais pelos ciclos curtos da economia circular.



Como citar:
Caldas, José Castro (2020), "Cadeias de valor globais", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 24.11.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30230. ISBN: 978-989-8847-24-9