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Biopolítica
Susana Costa, Filipe Santos

A COVID-19 surge como o “inimigo invisível” que, entre outras restrições, justificou um largo período de confinamento da população. Se pouco há de novo na necessidade de controlar e disciplinar os cidadãos através da vigilância, o desenvolvimento tecnológico e a adesão voluntária ao uso de artefactos (cada vez mais embebidos no próprio corpo) não só facilitam como convocam o cidadão a ser o vigilante de si mesmo e do próximo.

Na esteira de Foucault, (re)inventam-se velhos e novos aparatos de vigilância que ganham cada vez mais proeminência face ao medo instaurado, permitindo tornar os corpos mais dóceis. Na impossibilidade de domesticar o vírus, domesticam-se os corpos. E todos são suspeitos. Findo o período de confinamento, a obrigatoriedade do uso de máscaras vem reforçar o apelo ao distanciamento social (ou físico?) nos espaços públicos, dificultando o reconhecimento do “outro”, ao mesmo tempo que facilita a identificação dos não cumpridores.

Fazem-se testes para identificar os infetados e aferir a imunidade. Usam-se máscaras. Desinfetam-se as mãos. Controla-se a temperatura. Dividem-se os espaços em áreas limpas e contaminadas. Ao mesmo tempo, governos e gigantes tecnológicos conjugam esforços para recolher e armazenar dados dos cidadãos – desde dados pessoais e de localização celular, como aplicações para telemóvel RDG (rastreio digital de contactos), a dados recolhidos por wearables ou à recolha massiva de amostras biológicas. Não só para que cada um de nós se sinta mais seguro, mas para que o “outro” também se sinta seguro. Para ser “bom cidadão” e cumpridor em tempos pandémicos, ou simplesmente para voltar à vida para além do vírus, é necessário ficar sujeito ao controlo que cada Estado impuser, aceitando ser monitorizado e escrutinado nas ações mais básicas da vida quotidiana.

Se as restritivas medidas de vigilância biopolítica podem ser justificáveis num estado de exceção gerado por uma pandemia, afigura-se pouco provável o retorno ao que se pensava ser um estado de normalidade. O que será feito deste aparato de vigilância no pós-COVID-19? Servirá para a dotação de meios e infraestruturas para o combate a futuras pandemias ou será usada para dividir e classificar os cidadãos em função de um modelo de risco biopolítico?

Ao prolongar-se por tempo suficiente um estado de exceção, este torna-se a “nova normalidade”. No contexto atual, mesmo que surja uma vacina ou tratamento eficaz, não se afigura provável o abrandamento ou o fim das restrições sociais e físicas. Ficarão na memória coletiva a quarentena, o medo, a suspeição, a rua vazia, a depressão económica e social, que justificarão qualquer medida que venha comprimir os direitos de cidadania e a liberdade individual e coletiva.

A alternativa à vigilância e à dataficação da vida pública, seja realista ou utópica, é a tomada de consciência da responsabilidade individual e cívica. A tentação de conservar e expandir o aparato de vigilância será enorme. Fiquemos alerta.



Como citar:
Costa, Susana; Santos, Filipe (2020), "Biopolítica", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 26.04.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30442. ISBN: 978-989-8847-24-9