Se um trauma significa uma experiência assustadora, limite, desencadeada por um acontecimento externo, inesperado e intenso, passível de pôr em causa a sobrevivência física e/ou psicológica do próprio ou de outros, provocando descontinuidade, rutura, em relação às crenças e padrões de segurança anteriores, então a pandemia de COVID-19 tem todas as condições para despoletar trauma. Constatamo-lo no seu período inicial (medo do vírus, inimigo invisível com incógnitos mecanismos de ação, perigo de doença grave ou morte, confinamento, solidão, desagregação do anterior projeto de vida). Confirmamo-lo quando acrescem os sinais das suas consequências – ameaças no acesso ao trabalho, na sobrevivência económica individual e coletiva, nos funcionamentos familiares e redes de suporte. Inquietamo-nos com a incerteza das repercussões no ensino, das separações espartilhadas dos grupos etários, da exaustão dos serviços de saúde, das desconhecidas consequências patológicas nos indivíduos infetados e naqueles que, protelados no atendimento clínico, têm agravado as suas patologias. Mantemo-nos alarmadamente atentos a novos surtos, piores respostas, maior sofrimento. Neste contexto, facilmente irromperá uma nova epidemia, a das memórias invasivas, a que chamamos patologias traumáticas (lutos não feitos, culpas recalcadas, medos não explicados ou comportamentos impressos por gerações anteriores) e que podem saltar, de forma disruptiva, da caixa de Pandora onde as comprimimos. Prevemos um crescendo de sofrimento traumático nos indivíduos e nas comunidades.
É reconhecido o poder transformador de eventos traumáticos, a marcar o percurso dos indivíduos e das sociedades. O trauma resulta da interação entre acontecimentos específicos e indivíduos concretos, num determinado contexto sociocultural; as respostas de superação pós-trauma, as estratégias internas para (res)significação da experiência traumática, as necessárias soluções de suporte social carregam evidentes contornos da matriz cultural. O padrão atual de intervenção no trauma é predominantemente restritivo, centrado no modelo clínico tradicional, na intervenção sobre as vítimas e não com as vítimas. É tempo de alargar a intervenção. Num contexto potencialmente traumático como o atual, a forma de agir passa antes pela intervenção centrada na(s) comunidade(s) com respostas flexíveis que atendam à diversidade criativa, que estimulem a partilha solidária da informação, que integrem os saberes das comunidades locais e dos centros do conhecimento técnico, que promovam a intervenção cívica, num processo de crescimento maturativo dos indivíduos e das sociedades. Desse modo melhora-se a resposta emocional, controlam-se mecanismos de stress, estimula-se a resposta imunológica, assume-se a possibilidade de intervir como sujeito do próprio futuro. E, espontaneamente, essa atitude vai irrompendo – por certo, as atitudes coletivas de resposta solidária que se presenciaram durante a fase de confinamento COVID, foram também, elas próprias, formas espontâneas de prevenir o adoecer traumático.
Como citar: Sales, Luisa (2020), "Trauma", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 21.11.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30199. ISBN: 978-989-8847-24-9