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Transferência de conhecimento
Hugo Pinto

O papel das Instituições de Ensino Superior (IES) mudou significativamente nas últimas décadas. À visão centrada essencialmente na qualificação do trabalho e na produção de novo conhecimento, as IES conferiram centralidade à chamada transferência de conhecimento, privilegiando a ligação ao tecido empresarial e à inovação. Esta foi estimulada essencialmente com recurso à utilização de mecanismos de propriedade industrial (em particular patentes), reforçando o apoio ao empreendedorismo académico e a uma cultura organizacional virada para a obtenção de receitas próprias com prestações de serviços e obtenção de contratos de investigação.

Portugal teve uma entrada tardia, mas não ficou afastado desta tendência, mimetizando práticas e modelos institucionais de outros contextos, nomeadamente dos Estados Unidos da América. Esta visão de transferência, baseada na comercialização e valorização económica da ciência, não tem ficado isenta de críticas. Várias propostas mais alargadas do papel das IES têm sido veiculadas – ainda que com uma expressão limitada – para a animação dos sistemas de inovação, a geração de lógicas de inovação aberta que ativem a apropriação coletiva dos benefícios do conhecimento, ou o reforço da dimensão cívica, com a promoção de cidadania e liderança. O pós-pandemia será caracterizado certamente por um conjunto complexo de desafios às IES, quer nas suas funções mais tradicionais de Educação e Investigação quer na transferência de conhecimento.

A pressão sobre os orçamentos públicos vai comprimir ainda mais as disponibilidades das IES. É plausível que estas se centrem em domínios de I&D e Ensino considerados mais vendáveis. É necessário antecipar problemas entre a apropriação privada e o acesso público a terapêuticas e vacinas que se venham a desenvolver com o apoio das IES e de investimentos públicos.

Por outro lado, o espectro da pandemia vai provocar uma canalização excessiva de recursos para a investigação nas ciências biomédicas – atualmente daquelas em que o investimento é já mais significativo – criando distorções e barreiras à produção e transferência de novo conhecimento em muitos outros domínios. É provável que atividades de apoio sistémico – como as desenvolvidas por entidades intermediárias, nomeadamente gabinetes de transferência – que eram já caracterizadas por um enquadramento institucional precário, venham a ser fortemente afetadas, com impactos difíceis de mensurar.

É, portanto, fundamental dotar as IES de capacidade financeira para manterem a sua missão e estruturarem de forma planificada e com uma visão de longo prazo as suas linhas de interação com a sociedade, incluindo a ligação desejável com o tecido produtivo, social e cultural local, mas também com redes internacionais, para que a sua vocação universalista não fique refém de desígnios de desenvolvimento regional ou dependências de trajetória da especialização produtiva.



Como citar:
Pinto, Hugo (2020), "Transferência de conhecimento", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 28.03.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30201. ISBN: 978-989-8847-24-9