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Tribunais, órgão de soberania (quase) ausente
João Pedroso

O “Estado de exceção constitucional” está sujeito à fiscalização política da Assembleia da República (AR) e ao controlo judicial. Compete ao Tribunal Constitucional (TC) verificar a constitucionalidade “dos atos de decretação e de execução do estado de exceção que tenham natureza normativa, incumbindo aos restantes tribunais verificar a legalidade de atos, bem como a aplicação da responsabilidade penal e civil que decorra da sua prática.”. Assim, num Estado de Direito democrático, os direitos fundamentais não podem ser limitados, sem que os tribunais possam apreciar a constitucionalidade ou legalidade da exceção.

O artigo 5.º (1) (e), da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, e o artigo 27.º, da Constituição da República Portuguesa (CRP), proíbem o internamento compulsivo de pessoas “suspeitas”, só o permitindo para as efetivamente infetadas. No entanto, os governos das regiões da Madeira e Açores impuseram aos passageiros que aí desembarcaram – mesmo nas situações em que o teste laboratorial dava negativo à COVID-19 – a obrigação de isolamento profilático durante 14 dias, em hotel vigiado pela polícia.

Ora, o TC não se pronunciou sobre as referidas medidas restritivas dos direitos fundamentais. E, no que se refere aos tribunais judiciais, embora o impacto do Estado de exceção constitucional no seu desempenho ainda não esteja estudado, face à informação disponível, pode-se, no entanto, afirmar que estiveram “quase ausentes”, mesmo em matéria de proteção de direitos fundamentais. Os tribunais funcionaram numa lógica de “serviços mínimos”, com os prazos judiciais suspensos, assegurando unicamente os atos urgentes relacionados com validação da detenção policial, mas não procedendo sempre à tramitação dos demais processos urgentes, designadamente relacionados com o direito de família e das crianças. Apenas é conhecido o caso do Tribunal Judicial de Ponta Delgada que deferiu um pedido de libertação imediata efetuado por um cidadão colocado em quarentena compulsiva num hotel, tendo testado negativo à COVID-19, por constituir uma “privação inconstitucional e ilegal de liberdade”.

A declaração – com força obrigatória geral – de inconstitucionalidade, só pode ser requerida ao TC pelos Presidentes da República e da AR, a Provedora de Justiça, a Procuradora-Geral da República, um décimo dos Deputados à AR e pelo Primeiro-Ministro. Logo, em alternativa, e no respeito pela pluralidade da nossa sociedade exige-se, por um lado, que a iniciativa do controlo de constitucionalidade, em abstrato, seja alargada aos cidadãos organizados em associações ou através de petição. Por outro, é necessário alargar o conceito e a interpretação jurídica e prática de ato urgente, de modo em que, nas situações de suspensão de prazos judiciais, um maior número de situações de lesão de direitos seja atendida pelos tribunais.



Como citar:
Pedroso, João (2020), "Tribunais, órgão de soberania (quase) ausente", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 28.03.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30488. ISBN: 978-989-8847-24-9