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Visualidade
Maria José Canelo

A confluência de visão e conhecimento estabeleceu o ocularcentrismo como uma das bases mais sólidas da cultura moderna. As formas de produção das representações visuais, os objetos representados, os significados a eles associados e o seu impacto sobre as crenças e as práticas sociais são naturalmente situadas em contextos específicos e podemos falar da visualidade para referir a constelação de práticas discursivas que atribuem significados ao imaginário visual dominante.

A atual crise de saúde pública tem sido complementada por uma visualidade própria, as imagens e significados que explicam o que é a pandemia: imagens de hospitais a transbordar de uma humanidade comum que exibe desespero, doença e morte, que contrastam com outras, de ruas desertas, que associamos a desalento e medo. Estas imagens reais são acompanhadas por imagens simbólicas da codificação da doença em números, normalmente assistidos por outra imagem assídua, a representação visual do vírus. Esta permite ao olhar exercer o poder de captura e apropriar-se do representado, o que reduz o desconforto e o medo do que escapa à visão e ao conhecimento, porque estabiliza o vírus: dá-lhe forma, cor e até textura – vimos que é uma esfera esponjosa, fofa e cinzenta, salpicada de pequenos espinhos cuja extremidade assume uma forma semelhante a uma coroa. Esta fotografia usa cores artificiais: do núcleo cinzento, a esfera propriamente dita, às extensões, coloridas de vermelho, mas mesmo sem correspondência exata com a microscopia do vírus, a imagem tornou-se icónica e pedagógica, ao visualizar essa entidade na verdade invisível a olho nu. Já a conversão dos números em gráficos, tabelas e mapas propõe outro tipo de epistemologia visual, através do processamento e tradução de dados em esquemas que produzem informação interativa, em atualização permanente, sugerindo que se assiste à disseminação da pandemia em direto. Os números arrumados em regiões e grupos etários e o traçado de redes de contacto propõem a legibilidade da pandemia, sugerindo controlo, tomada de decisões responsáveis, confiança e segurança. Mas identificar não é compreender. As imagens fazem parte de uma lógica imediatista que mostra, mas não explica; oferece, mas não preenche, num nexo de consumo que apenas satisfaz o olhar.

Certo é que, no desenvolvimento da cultura ocularcêntrica, a relação dos sujeitos com as imagens não foi acompanhada por instrumentos de análise crítica ou por uma literacia visual que permita, primeiro, selecionar as imagens significativas das que apenas pacificam o olhar e a inquietação do momento. A observação deve ser atenta e responsável, deve exigir contexto e comparar imagens; tem de ser persistente, vasculhar a genealogia da pandemia: as ligações à história, à economia, à política, à cultura, a outras catástrofes; buscar as causas naturais e humanas e também os reflexos do futuro que a imagem projeta. Esse olhar crítico sabe evitar a ofuscação, suspeita do excesso de visibilidade ou de foco, interessa-se pela perspetiva e procura também o que não é visível. A tudo isto podemos chamar a interpretação; sem ela, a imagem nunca diz o suficiente.



Como citar:
Canelo, Maria José (2020), "Visualidade", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 25.04.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30197. ISBN: 978-989-8847-24-9