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Desigualdades espaciais à escala urbana*
Eliana Sousa Santos

Há testemunhos do passado que se tornaram ainda mais relevantes no contexto de pandemia global em que vivemos. No texto “Stocktaking Architecture: Tradition/Technology” (1960), o historiador de arquitectura Reyner Banham (1922-1988) propõe uma nova definição de arquitectura que não se esgote na matéria construída e que criasse o que ele chamou de fit environments – que podemos traduzir por ambientes adequados ou seguros para as actividades humanas. Para exemplificar o que a arquitectura poderia ser dentro dessa definição alargada, Banham refere que um lago infectado com um vírus poder ser transformado num ambiente seguro se todos os que visitarem forem vacinados contra essa infecção, e nesse caso a vacina seria um dispositivo “arquitectónico”, – já que permitiria a transformação de um lugar ameaçador num espaço público. Banham escreveu este texto poucos anos depois da descoberta e produção da vacina para a poliomielite, uma doença que assombrou o imaginário da primeira metade do século XX. A poliomielite era, tal como a actual pandemia de COVID-19, uma doença que tornava mais visível as desigualdades espaciais que afectavam essencialmente as populações mais vulneráveis, para as quais a vacina, disseminada a partir de 1955, ofereceu a liberdade de passear no parque ou nadar numa piscina pública.

Nos últimos anos, assistimos à transformação dos tecidos urbanos das cidades pelas dinâmicas de investimento. O redesenho dos espaços públicos das cidades ocorreu em simultâneo com a sobrevalorização do preço das habitações, o que levou a que, genericamente, áreas sobrevalorizadas tenham acesso a mais e melhores espaços e equipamentos públicos, intensificando as desigualdades espaciais à escala urbana. 

No actual contexto da pandemia global, as desigualdades em todas as instâncias tornaram-se cada vez mais aparentes e, do mesmo modo, quando o acesso a espaços e equipamentos públicos foi condicionado, o acesso a jardins, praias, piscinas, e outros equipamentos fundamentais para a saúde física e mental resumiram-se a propriedades privadas. Mesmo num período de retorno às actividades normais, a escassez de espaços públicos de qualidade reflete as desigualdades estruturais da sociedade.

Tal como tem vindo a acontecer desde as últimas décadas, é de esperar que testemunhemos, num futuro próximo, a emergência de novos vírus zoonóticos com princípios de transmissão semelhantes aos que causaram a actual pandemia. Para os ultrapassarmos, é fundamental estabelecermos uma rede de soluções, necessariamente redundantes, que permitam utilizar espaços públicos livremente. Essas soluções passam pela criação de mais espaços públicos de qualidade acessíveis ao maior número e pelo redesenho dos existentes, de modo a que possam ser ocupados em segurança. Da mesma forma, e seguindo o pensamento de Banham, estas estruturas construídas devem ser complementadas pela criação, produção e disseminação de novos equipamentos de protecção individual, assim como tratamentos e vacinas – os outros dispositivos “arquitectónicos” que podem transformar um espaço adverso num espaço seguro.

 


* Por vontade da autora, este texto não segue as regras do Acordo Ortográfico de 1990.



Como citar:
Santos, Eliana Sousa (2020), "Desigualdades espaciais à escala urbana", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 26.04.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30425. ISBN: 978-989-8847-24-9