Consta que Platão decidiu banir os poetas da sua cidade ideal porque a poesia mente. E consta também que alguém disse que a poesia não mente, porque a poesia nada diz.
Não é bem assim.
Grande admirador de Homero e dos trágicos gregos, Platão entendia, porém, que só deveria ser admitida na educação dos guardiães da cidade ideal a poesia que apenas louvasse os deuses e os heróis. Na cidade ideal de Platão imperaria o direito e a razão, e não haveria lugar ao prazer e à dor, ao sentimento e à paixão, à crítica e ao contraditório. A poesia parece ser um problema para Platão porque a poesia – ao contrário da filosofia, que na República se diz servir, só ela, o bem e a justiça – interrompe o statu quo. E desassossega.
Mas é justamente por isso mesmo que a poesia digna desse nome se impõe ainda hoje como parte de uma solução sempre em curso.
Alguém disse já que a língua é poesia fossilizada. No princípio, a palavra coincidia com a coisa, e dizia, com acribia e limpidez, aquilo que é. Mais tarde, a palavra passou a linguajar, de longe, mera informação. Só na poesia digna desse nome continua a palavra a perguntar pelo seu próprio rigor. Se não interromper, se não interrogar, se não resistir, se não desassossegar – a poesia não cumpre o seu papel de principal interpeladora.
A poesia – que não é adorno ou consolo, antes interrupção e pergunta – não diz a verdade que a filosofia diz dizer. A poesia interpela a verdade e pergunta por ela. A querela entre a filosofia e a poesia, de que Platão dá conta na República, continua hoje, lamentavelmente, depois de tanta polémica sobre as duas, três ou quatro culturas, entre as Ciências (Sociais) e as Humanidades.
Mas se o binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo, a Vénus de Milo é tão verdadeira como o binómio de Newton. Ambos são imprescindíveis para o difícil caminhar humano no sentido de um mundo melhor.
É que a poesia não mente. A poesia diz-se. E, ao dizer-se, a poesia diz o mundo. Que seja ouvida, alto e bom som!
* Por vontade da autora, este texto não segue as regras do Acordo Ortográfico de 1990.
Como citar: Ramalho, Maria Irene (2020), "Poesia", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 11.10.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30174. ISBN: 978-989-8847-24-9