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Artes
Giuseppina Raggi

Entender a criatividade e os resultados artísticos que dela nascem como uma atividade gratuita é o leitmotiv da vida dos artistas. Quando se apresentam (“sou música/o”, “sou bailarina/o”, “sou realizador/a”), a pergunta mais espontânea que segue do interlocutor é: “sim, mas o que faz?”. Refiro-me, obviamente, ao elevado número de artistas que desenvolvem a sua atividade sem alcançar a fama de star.

Ora, a crise pandémica de COVID-19 revelou ainda mais a fragilidade de quem trabalha no setor artístico e a dificuldade da classe política em entender os artistas como trabalhadores e como agentes de importância crucial para a sociedade. Durante as primeiras semanas da pandemia, “arte” e “cultura” foram palavras esquecidas.

Para enfrentar esta situação, a autoprodução criativa em plataformas sociais como iniciativa pessoal evidenciou a vitalidade das artes, mas, ao mesmo tempo, transmitiu a ideia da sua “gratuidade”, isto é, de uma realidade desvinculada das problemáticas dos trabalhadores. No prolongamento do confinamento, a fragilidade económico-social do setor deflagrou, demonstrando a complexidade da condição de instabilidade com que os artistas lidam, mesmo em tempos não pandémicos.

Mais de um mês após o início da crise, as reuniões entre sindicatos e governo estavam a ser inconclusivas numa situação de extrema emergência laboral para os artistas. A disponibilização de plataformas digitais para viabilizar a produção artística e a contratação de artistas foi uma das respostas, sem, todavia, tocar o “coração” do problema.

Depois de um primeiro uso dado às redes sociais como palcos para a continuação das próprias atividades criativas, os artistas – principalmente os envolvidos no campo das artes performativas – escolheram o silêncio e o ecrã branco, mudando radicalmente a mensagem: as artes não são lazer gratuito, nem os artistas podem ser excluídos da dignidade que se reconhece aos trabalhadores. Assim, nasceu o manifesto “Unidos pelo Presente e Futuro da Cultura em Portugal” e a Vigília Cultura e Arte, que decorreu no dia 21 de maio de 2020.

A solidariedade entre artistas que surgiu neste tempo pandémico demonstrou também a força e o valor das iniciativas conjuntas e da coesão entre profissionais das artes, mas destacou ainda mais a falta de atenção governamental e de uma solução estrutural.

Tendo em conta a vocação à liberdade da criação artística, a pandemia revela que, para além da necessidade de melhorar as estruturas de apoio social e laboral para os artistas, os tempos pós-pandémicos poderão vir a ser uma ocasião para rever radicalmente o modo como a sociedade olha para as artes.

Será assim necessário implementar políticas e planear ações que visem transitar o entendimento das artes do âmbito do lazer para o da “criatividade estrutural”, porque, sem negar o papel de diversão que lhes compete, as artes representam muito mais do que eventos complementares da vida social. Ao contrário, constituem (ou deveriam constituir) um dos principais pilares fundantes das sociedades contemporâneas.

Por isso, é preciso incidir profundamente na visão política e no sistema educativo nacional, reconhecendo às artes um papel fulcral na reflexão, elaboração e superação dos desafios sociais, históricos e políticos que a pandemia revelou ainda mais abertamente, como demonstra o movimento global Black Lives Matter.

Se as artes e a cultura são os primeiros campos a desaparecer em situações de emergência, a pós-pandemia representa uma “inesperada”, mas imperdível oportunidade para implementar uma nova visão política destes setores, uma vez que custodiar, preservar e defender a criatividade (seja qual for a situação e custe o que custar) significa defender a pluralidade e a democraticidade da sociedade portuguesa, europeia e mundial.



Como citar:
Raggi, Giuseppina (2020), "Artes", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 25.04.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30086. ISBN: 978-989-8847-24-9