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Arquitectura da habitação*
Tiago Castela

O debate sobre a habitação durante a pandemia concentra-se em urgências, como o alojamento de pessoas sem casa, ou os despejos de pessoas arrendatárias após a protecção excepcional expirar. Simultaneamente, para além da questão crucial da economia política da habitação, urge repensarmos a arquitectura da habitação. A investigação preliminar sugere que a densidade urbana não é um factor relevante na pandemia, sendo por contraste a falta de dimensão adequada das habitações um factor. Já a materialidade e forma da habitação são elementos centrais na crise climática: desde as emissões associadas à utilização de materiais de construção mais aptos para a industrialização, ao aumento de volumes construtivos e da dispersão da habitação privilegiada. Neste quadro, o problema da arquitectura da habitação que resulta da mercantilização do espaço inclui três questões centrais: a falta de acesso da maioria das pessoas cidadãs a especialistas aptos a projectar as necessárias transformações, face a pandemias e à crise climática; a falta de dimensão adequada de unidades habitacionais e dos espaços exteriores para peões, em muitas zonas residenciais; e as emissões inerentes à construção e ao urbanismo.

É, assim, necessário pensar a arquitectura da habitação a partir do Estado, evitando uma fragmentação de políticas, mas sem regresso ao planeamento tecnocrático. Isto incluiria um projecto democrático da habitação a várias escalas, e o fornecimento de serviços técnicos para intervenção directa – especialmente para pessoas sem acesso a serviços privados de arquitectura. Poderíamos designar este processo de Serviço Nacional de Arquitectura (SNA). O SNA poderia coordenar de imediato as seguintes medidas: em todas as cidades, reclassificação das vias com uma maioria de edifícios residenciais e com passeios com menos de 2 metros de largura, impondo um limite de velocidade de 30 km/h em via partilhada; definição de um programa de construção de varandas em edifícios com unidades de dimensão reduzida, como se tem feito em França; e alteração do Regulamento Geral das Edificações Urbanas para introduzir áreas máximas para os compartimentos, e não apenas mínimas. A médio prazo, o SNA poderia ainda desenvolver as seguintes políticas: desencorajar em regiões urbanas a construção nova e dispersa, impossível de servir por transportes colectivos; fomentar a reabilitação com materiais associados a menores emissões e aumentando a eficiência energética; incentivar a geração local de energia em coberturas planas não acessíveis; e fomentar uma mistura de actividades nas zonas residenciais, interditando a construção de novos centros comerciais periféricos. Estes são apenas exemplos; só com um programa de transformação nascido da deliberação democrática, informada pelo conhecimento especialista, poderemos transformar a arquitectura da habitação de uma maneira tão ambiciosa como a do século XX. Mas, desta vez, sem a crença no desenvolvimento permanente, que tão destrutiva do planeta e promotora de desigualdades se revelou.

 


* Por vontade do autor, este texto não segue as regras do Acordo Ortográfico de 1990.



Como citar:
Castela, Tiago (2020), "Arquitectura da habitação", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 30.06.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30508. ISBN: 978-989-8847-24-9