São profundos os efeitos da COVID-19 sobre as cidades. Paralisou a economia e a convivência social. Travou os transportes e ameaçou o emprego. Promoveu aprendizagens sem ambiente social. Interrompeu a música, apagou o cinema, matou a rua. Encheu os hospitais. O medo instalou-se e o cenário da morte urbana pressentiu-se.
As cidades não morrem facilmente. Apenas 42 cidades desapareceram do mapa desde o ano 1100 até hoje. Embora sejam formas vulneráveis de organização humana, as cidades têm sido capazes de enfrentar o seu próprio declínio. Seja o gerado por disputas de espaços urbanos, devastações bélicas, ou calamidades políticas, financeiras ou geográficas e ambientais, as cidades têm procurado soluções resilientes e sustentáveis. Sempre com enormes assimetrias e disparidades, visíveis nos nortes e nos suis globais. Detroitismo e alepismo, nas suas distintas escalas, são exemplos do esforço de regeneração urbana.
As cidades insistem em ser a base da sociedade moderna. Bastará isso para esperarmos uma regeneração pós-pandémica da cidade? Que outras linguagens terão de ser inventadas?
Na cidade, as pessoas estão juntas e, dizem as estimativas, dois terços da humanidade serão urbanos em 2050, com a marca indelével da tragédia demográfica das cidades pobres do Sul global. Só nas cidades há recursos para pensar as soluções para as crises que irão perfilar-se à nossa frente. Há outras linguagens políticas que terão de surgir no cadinho da inovação da cidade e da cultura urbana:
- A linguagem da rua, com quotidianidades de maior respeito intergeracional e fácil com-vivência com as diferenças;
- A linguagem da mobilidade de escala humana e dos espaços verdes, com mais ciclovias, mais espaços para caminhar e menor desperdício;
- A linguagem dos transportes coletivos, com um sistema público menos poluente, de proximidade e acessível;
- A linguagem dos edifícios, com novas cautelas ambientais e outros meios de segurança e de circulação interna;
- A linguagem do trabalho e do emprego, com maior autonomia e mais fácil adaptação a sistemas produtivos inovadores;
- A linguagem do ensino com mais informação e mais digitalidade ao lado das sociabilidades;
- A linguagem da saúde cultural, com consistência e abertura a grupos e lugares alternativos de criação;
- A linguagem dos consumos moderados, ambientalmente sustentáveis e socialmente responsáveis;
- A linguagem da desconcentração espacial dos equipamentos e recursos, com estruturas urbanas leves e funcionais.
A lógica perversa do aceleracionismo e da instantaneidade urbana tem de ser invertida para se ensaiarem novas linguagens vagarosas e coletivas de fazer e de estar nas cidades.
É preciso surpreender o futuro urbano como a COVID-19 surpreendeu as cidades e as fez inativas.
O exemplo de Rijeka é poderoso. De repente, a cidade viu arruinado o seu plano de Capital Europeia da Cultura 2020. Reinventou-se e está a oferecer linguagens culturais alternativas: ballet sem contacto físico, concertos em edifícios inacabados, conferências em velhos monumentos, teatro com distância física segura.
Outras cidades estão já a pôr em marcha os projetos pensados para 2030. O confronto com o coronavírus deve servir para forjar novas urbanidades e criar outras cidades, diferentes da conhecida “normalidade” urbana.
Como citar: Fortuna, Carlos (2020), "Cidades", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 21.11.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30365. ISBN: 978-989-8847-24-9