A emergência de COVID-19 criou um espaço ritualizado que quebrou a liberdade individual e a sociabilidade das comunidades. Do olho da câmara do computador ao “distanciamento social”, das máscaras até à vigilância do outro, vivemos hoje num ritual de aeroporto, sem aviões a partir: protocolos, suspeição, lojas de luz apagada. Há “alfândegas” e um “controlo de bagagens” ao mais ínfimo e intimo detalhe: o ar que se respira.
No confinamento, como no desconfinamento, o espaço é ritualizado, ao modo de uma experiência totalitária e distópica: os passos são medidos, a distância é obrigatória, o outro é um possível agente do vírus, ou talvez mesmo um alien à maneira de They Live de John Carpenter. A autoproteção é também a proteção dos outros; afinal, nós próprios podemos ser o alien. E é o nosso rosto que permanentemente surge no ecrã do computador, num quotidiano online também ritualizado, em links, agendamentos, mão levantada. O portátil transformou-se num espelho digital, para onde falamos constantemente; a máscara devolve-nos o som da nossa voz. O espaço ritualizado é também o da desinfeção, o do lavar as mãos e superfícies, antes e depois. Desinfeção, como num avião em viagem intercontinental; digitalização, como num futuro a que se tem de aderir compulsoriamente.
A ritualização do espaço pelo turismo, que estava em crescimento exponencial e aparentemente inexorável, foi abruptamente interrompida por esta ritualização imposta por um vírus: sobre nós caiu um silêncio desconhecido com regras e instruções planetárias.
A desritualização do espaço está dependente da evolução da pandemia, dos picos e das ondas, das estatísticas e da letalidade. Mas é uma tarefa de sobrevivência societal, significará a prevalência do sentido social das comunidades e da nossa liberdade individual. A baixa densidade e o “campo” como retiro dos que tendem a ser os mais privilegiados não pode substituir a alta densidade e a cidade como o lugar eleito da democracia, o que seria uma regressão civilizacional. Reganhar a cidade significará abrir as portas, cruzar todas as mobilidades, não permitir que a vigilância, digital, física, territorial, se imponha como modelo.
O pós-COVID-19 deverá ser o momento onde regressámos à cidade com um sentido novo talvez mesmo um novo paradigma: o de encontrar algo que nunca se pensou perder. As ruas e as praças serão as mesmas, mas o nosso olhar será diferente; e talvez esse novo olhar possa afinal investir a cidade de um outro sentido de inclusão e de sociabilidade.
A experiência do espaço ritualizado é estruturalmente intrusiva, tendencialmente totalitária, e não se pode normalizar. “A romantização da quarentena é privilégio de classe” está escrito na parede. A quarentena significa um espaço ritualizado, que estratifica e exponencia as diferenças sob um manto de aparente igualdade.
Desritualizar o espaço significará sair do aeroporto do confinamento, e do desconfinamento, e regressar, desligando o olho da câmara, até à cidade – que será a mesma; que será outra.
Como citar: Figueira, Jorge (2020), "Espaço ritualizado", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 21.11.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30278. ISBN: 978-989-8847-24-9