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Vigilância digital
Rui Gomes

Durante a pandemia de COVID-19, a vulnerabilidade das instituições revelou-se nos ataques ao pilar democrático. A metáfora bélica permitiu preparar a mentalidade necessária a medidas como o estado de emergência, a submissão a um comando único de especialistas e políticos, a limitação das críticas e dos ataques a quem está no comando da crise ou a aceitação dos danos colaterais, como a vigilância digital.

Os sistemas de monitorização da parcela da população infetada e de todos os potenciais frequentadores de espaços adjacentes durante a sua mobilidade e confinamento vulgarizou-se no contexto europeu. O capitalismo digital predispôs-se rapidamente a participar, de forma autónoma, ou colaborando com o Estado, no desenvolvimento destes sistemas, que já existiam para efeitos de rastreamento de comportamentos de consumo, publicidade, criação de perfis de mobilidade, antecipação de comportamentos e promoção de estilos de vida. A sincronização dos telemóveis permite um controlo permanente do perfil e dos movimentos de cada sujeito e a transferência em tempo real desses dados para centrais de análise que disparam em microssegundos ofertas de bens e serviços. A rotina da sincronização, monitorização e disponibilidade para receber estímulos de natureza comercial, quer através dos sistemas de localização dos smartphones quer através de GPS, estava já integrada nos comportamentos socialmente aceites.

Em Portugal, vinga por ora o modelo persuasivo de vigilância, baseado no poder sedutor das novas tecnologias e no uso de aplicações de geolocalização frequentes nos jogos de busca e captura de “monstros perigosos” (PokémonGo). Neste caso, a medida está a ser banalizada através do uso da game mentality, que faz parte das sociabilidades de uma parte da população.

O fenómeno é global e necessita de uma regulação global e continental. As regulações nacionais são necessárias, mas isoladas terão pouca capacidade para impedir os abusos.

Os governos devem garantir que os dispositivos digitais sejam concebidos e utilizados de uma forma compatível com as normas de respeito da vida privada e de proibição da discriminação. Os dispositivos eletrónicos de vigilância sanitária não devem ser permitidos. A utilização voluntária, ainda que consentida e informada, abriria a porta à sua generalização futura, sobretudo se a situação sanitária se prolongar e repetir.

As leis que autorizam os Estados a recolher, utilizar e armazenar dados de caráter pessoal devem ser rigorosamente compatíveis com o direito à privacidade e revogadas quando não o fizerem.

As iniciativas governamentais e de mercado devem ser submetidas a um escrutínio independente urgente. A aceitação transitória de medidas intrusivas em que a estratégia do medo de contrair a COVID-19 funcionou, deve ser sujeita a uma supervisão rigorosa por órgãos independentes, controlo judiciário, monitorização pelo Parlamento e acompanhamento das instituições internacionais de direitos humanos.



Como citar:
Gomes, Rui (2020), "Vigilância digital", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 30.06.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30195. ISBN: 978-989-8847-24-9