A crise tende a criar espaço para sentimentos nacionalistas, racistas e fascizantes e avoluma o perigo de saídas autoritárias. Se é verdade que os contextos históricos não se repetem, também é certo que as crises trazem consigo essa ameaça política, mobilizadora da incerteza, do medo e do ressentimento. Foi assim no passado e está a ser assim hoje em alguns países. Não está escrito nas estrelas que não possa ser assim noutros lugares, como em Portugal. A pandemia de COVID-19 agravou problemas e disfunções sistémicas previamente existentes. À crise sanitária seguir-se-á uma crise económica e social que, aliás, já se instalou e cujos impactos serão extensos e desigualmente repartidos. Neste contexto, existe a ameaça de proliferação de propostas nacionalistas, racistas e fascizantes, ancoradas no manejo de certos traços persistentes na sociedade portuguesa, conjugados agora com os abalos que a crise provoca(rá).
A memória dos combates pela democracia, pela igualdade e pela justiça constitui-se assim como um dos contrapontos a esta ameaça. Com efeito, as lutas antifascistas, as lutas anticoloniais, o 25 de Abril, as lutas pela democratização do país ou pela construção e defesa do Estado social são heranças que determinaram geneticamente a democracia portuguesa. A interpelação deste património – nas suas promessas cumpridas, mas também nas suas limitações ou insuficiências – é um dever cívico e um dos antídotos necessários para enfrentar as ameaças autoritárias e antidemocráticas. A memória é necessariamente dinâmica, plural e aberta ao contraditório e a sua rasura desprotege as comunidades e empobrece a imaginação política. Ao apagamento induzido ou involuntário do passado importará contrapor o acesso e difusão do conhecimento histórico e a preservação da memória. O Estado tem naturalmente um lugar de destaque na valorização da memória. A sua defesa, porém, não deve ser feita apenas a partir do Estado e da sua institucionalidade. A clivagem entre a (erradamente) chamada “classe política” e um suposto “sentir popular” é justamente a clivagem que a hipótese autoritária procura(rá) explorar. Nessa medida, a ativação da memória das lutas emancipatórias não se fará sem o envolvimento de vários atores sociais: partidos políticos, movimentos sociais, associações, academias, historiadores e outros profissionais ligados ao trabalho com o passado, etc. Só enquanto herança viva – resistindo à despolitização, ao cerimonialismo institucional e à evocação passadista – pode a memória encontrar os seus caminhos de futuro e funcionar como um antídoto contra a organização do esquecimento, que tão útil seria a quem quer redesenhar a sociedade a partir da desigualdade, da exploração e do medo.
Como citar: Cardina, Miguel (2020), "Políticas da memória", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 21.11.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30176. ISBN: 978-989-8847-24-9