Tenho assistido a diversos debates sobre as possíveis mutações no habitat urbano resultantes da pandemia de COVID-19. Só ao longo deste ano 0 d.C. – como lhe chama um colega bem-humorado –, começaremos a perceber melhor essa cidade depois-da-COVID, à luz das dinâmicas urbanas que conhecíamos a.C.
Alguns referem que nada mudará substancialmente: voltaremos ao business as usual, e o real será apenas um pouco pior, um pouco mais iníquo para os idosos, doentes crónicos, sem-abrigo, etc. Outros descrevem um caminho para a distopia urbana, no qual abandonaremos as cidades densas, os edifícios coletivos, os espaços públicos massificados, em busca de um casulo onde possamos isolar-nos, entre a família e o (tele)trabalho, entre o medo do “outro” e a obediência à vigilância sanitária “deles” (o Estado). Nessa visão pós-apocalíptica, o ano de 2020 terminará em 1984 – o de George Orwell.
Uma terceira visão afirma que esta é a oportunidade de alcançarmos aquilo que, até agora, era apenas uma utopia ecológica: o fim da predação dos recursos naturais e a imediata descarbonização do planeta, sendo evidente que este beneficiou com os nossos meses de confinamento.
Não afianço certezas considerando a resiliência das cidades, mas pressinto que assistiremos a uma conjugação variável dessas visões. A urbanização neoliberal aproveitará decerto a polarização de posições: aqui e ali, haverá um novo sprawl, motivado pela fuga dos mais céticos para regiões isoladas (salvando-as ironicamente da desertificação?); aqui e ali, anunciar-se-ão novos bairros e edifícios mais adaptados à economia verde.
Interessam-me mais as opções daqueles que continuarão a viver, militantemente, na cidade densa, cosmopolita, conflitual. Apenas aí, se poderá construir a alternativa em que acredito: uma cidade mais compartilhada, no espaço e no tempo, pela coesão intersocial, intercultural e intergeracional. No habitar, o indivíduo terá lugar para o seu confinamento (se dele precisar), mas nos restantes espaços residenciais comuns – salões, pátios, terraços, jardins –, ele dividirá usos e custos com os seus vizinhos, com base em valores justos (cohousing); no trabalhar, se possível mais bem articulado com o habitar, os recursos coletivos deverão ser também mais repartidos e otimizados (coworking).
No espaço público, haverá lugar privilegiado para o peão e para as mobilidades suaves (ex. cycling), sem deixar de se reforçar o transporte coletivo e o uso partilhado, em segurança, do transporte próprio (ex. eCar-sharing). Os equipamentos serão de todos, embora adaptáveis ao isolamento e tratamento de cada um, em caso de novas pandemias.
E não só o espaço será flexibilizado; também o tempo qualitativo (não o quantitativo) se baseará na partição dos modos de trabalho, horários e movimentos pendulares, evitando inúteis deslocações e horas de ponta. Esta alternativa será um passo para a requalificação do habitat urbano, mas sobretudo para um renovado “direito à cidade”.
Como citar: Grande, Nuno (2020), "Ano 0 d.C.: mutações no habitat urbano", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 21.11.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30164. ISBN: 978-989-8847-24-9