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Analogia entre pandemia e guerra
Ana Cristina Pereira, Gaia Giuliani, Rita Santos, Sílvia Roque

Desde o início da pandemia de COVID-19, tem sido recorrente o recurso a expressões que remetem para uma analogia entre a pandemia e a guerra. Nesta narrativa simplificada, o vírus é o “inimigo invisível”, os hospitais são a “linha da frente” e os profissionais de saúde “os ‘nossos’ heróis”. Se é verdade que, em alguns contextos, a letalidade do vírus ou os seus impactos económico-sociais podem ser superiores aos de uma guerra, é de assinalar que a utilização sistemática desta retórica, em particular por parte dos media e de decisores políticos, é geradora de uma série de problemas sobre os quais é necessário refletir.

A ideia de guerra é usada como significante de urgente, com o objetivo de intensificar a mobilização de meios e recursos, por um lado, e de gravidade, apelando à ordem, disciplina e obediência da população, por outro. Aqueles que ficam confinados remetem-se ao cumprimento das ordens e a serem passivamente protegidos, e os que são chamados a intervir são classificados como “heróis”, aplaudidos pelas suas qualidades extra-humanas para atuar na “linha da frente”. Remetendo para um estado excecional e imprevisível, invisibilizam-se as constantes chamadas de atenção para os riscos de pandemia lançadas por académicos e/ou ativistas, bem como a negligência dos Estados relativamente à preparação e organização dos serviços de saúde e de apoio social pré-epidemia – tendo estes delegado às cidadãs e aos cidadãos a capacidade de se sacrificarem pelo bem comum. A retórica do conflito e do inimigo pode traduzir-se numa linguagem que tende a substituir o “inimigo invisível” por “inimigos visíveis”, assim designados pelo seu potencial de “contaminação”, ou seja de transmissão do vírus, sendo necessário contê-los, afastá-los ou protegê-los contra a sua vontade. A linguagem de guerra autoriza comportamentos “musculados” e de defesa de interesse próprio (i.e., acumulação de armas de fogo ou de bens de proteção contra o vírus) e é associada a figuras de autoridade e de proteção fundamentalmente brancas e masculinas.

Em alternativa aos discursos de guerra, é necessário:

  • Colocar a ênfase nas políticas dos tempos de “normalidade” e nas suas consequências na gestão de políticas de tempos de exceção (emprego, apoio social, serviços de saúde);
  • Destacar práticas e discursos sobre o cuidado com os outros, da interdependência, e da necessidade de o reforço de vínculos entre as pessoas e de estruturas sociais coletivas, horizontais, abertas e democráticas, baseadas na corresponsabilidade do cuidado e no bem comum;
  • Combater representações de reforço identitário e nacionalista (tais como proteger “os nossos” do vírus e “comportamentos externos”) ou autoritários, patriarcais e punitivos (proteger por via da força);
  • Reforçar mecanismos democráticos de monitorização de discursos e práticas públicas no plano representativo, participativo e de contestação de medidas e discursos de teor belicista, nacionalista, heteropatriarcal e punitivo;
  • Pensar de forma crítica e desconstruir ativamente os referidos discursos belicistas.


Como citar:
Pereira, Ana Cristina; Giuliani, Gaia; Santos, Rita; Roque, Sílvia (2020), "Analogia entre pandemia e guerra", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 20.04.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30359. ISBN: 978-989-8847-24-9