O futebol é das mais importantes expressões do mundo contemporâneo. É disputado à escala global com tal intensidade que, em alguns países, ocorre até um processo de futebolização da vida social e política. Na essência, o futebol é um jogo lúdico, com linguagem, representações e contingências próprias, repetindo-se estes elementos em todos os jogos – independentemente de se assistir a um jogo disputado na rua ou no mais sofisticado dos estádios. A Fédération Internationale de Football Association - FIFA, entidade que gere o futebol a nível mundial, constitui das mais relevantes organizações internacionais, seja pela quantidade de países associados ou pelo valor orçamental que movimenta, seja pela forma como mercantilizou o futebol e o promoveu à escala planetária. De um jogo simples, disputado por duas equipas, baseado na emoção identitária, o futebol tornou-se num produto complexo pelas múltiplas dimensões que foi acumulando, convertendo os clubes em empresas, os dirigentes em gestores, os jogadores em trabalhadores/mercadorias e os adeptos em clientes – num processo em que para além dos resultados desportivos se procuram maximizar ganhos financeiros e dividendos políticos, potenciados pela comunicação social e pelas transmissões televisivas. Para além do olhar encantado e romântico sobre o jogo, as jogadas e os jogadores, o futebol metamorfoseou-se com a economia, adulterou-se com a política e frustrou-se com a violência, o racismo, a xenofobia e o sexismo.
A paragem do futebol por efeito da pandemia de COVID-19 tornou manifesto o excessivo espaço mediático ocupado pelo jogo e seus derivados, revelando que é possível a sociedade existir sem esse futebol dominante e tudo o que lhe é inerente. Enquanto produto hegemónico, o futebol – essencialmente o de alta competição – tem de se recriar sobre um modelo económico aparentemente esgotado. Um outro futebol é possível, mas para que tal suceda é necessária uma lógica que – ao invés do mercado – privilegie a ética desportiva, previna a dopagem e a violência, e privilegie o fair-play bem como uma ética social que impeça racismo, xenofobia, discriminação, corrupção e promova a integração. Considerando a relevância social do futebol, a gestão deste desporto por entidades privadas nacionais e internacionais não pode ser acrítica por parte dos poderes públicos, pois obriga a uma vigilância da sua utilidade pública desportiva e de todas as práticas institucionais que lhe são inerentes – e que vão desde a gestão dos direitos televisivos, ao comportamento dos adeptos, passando pela mercantilização das transferências internacionais de jogadores. O futebol permite uma outra gramática da dignidade humana, mas para que tal suceda é importante que todos os agentes futebolísticos, a começar pelos jogadores, tenham um comprometimento social que se traduza em assunções políticas e de defesa de valores. Um futebol que se emancipe dos grandes estádios e procure formas alternativas de jogo – como por exemplo o futebol de rua, o futebol popular e amador –, formas inclusivas, desinteressadas e emancipadas de jogar.
Como citar: Nolasco, Carlos (2020), "Futebol", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 21.11.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30119. ISBN: 978-989-8847-24-9