A segurança é um sintoma do biopoder que vem do século XVIII. Fazendo da morte um objeto de apreensão, o poder disciplinar preocupou-se com a sobrevivência, com o prolongamento da vida e com a proteção da higiene pública. Filiado em novas tecnologias políticas do corpo, estendeu a sua atuação ao conjunto da população em questões como a natalidade, a fecundidade, a velhice e o controlo das endemias. O tema da segurança vem de trás e atravessa esferas muito diversas da vida – do corpo ao ambiente, da segurança rodoviária aos riscos financeiros –, mas agora as respostas foram ancoradas na prevenção e responsabilização de cada um pelo controlo dos riscos e da saúde. A socialização prudencial criou nos últimos 25 anos a mentalidade propícia à conformação rápida com todas as medidas de confinamento na sequência da pandemia de COVID-19 que, em muitos casos, antecipou as decisões estatais de exceção, típicas do autoritarismo sanitário, dando um poder reforçado aos especialistas.
Ao lado da segurança criada pelas novas tecnologias, que reduzem os medos que caracterizavam no passado a existência corporal, exacerbaram-se também as incertezas quanto aos riscos que o futuro anuncia. O maior foi revelado pelo efeito amplificador das condições de saúde prévias desiguais na probabilidade de adoecer e morrer. No final, para além das estatísticas de infetados e óbitos, haverá uma curva para a desigualdade dos riscos: os mais pobres morreram mais, os grupos étnicos minoritários foram mais atingidos pela letalidade, os mais vulneráveis perderam mais rapidamente o emprego e o mínimo necessário à sua sobrevivência, os que já tinham condições de habitação precárias viram a sua situação piorar. Fazer viver e deixar morrer ressoou nesta crise.
Estabelecer políticas participativas e de cuidado do outro, valorizando o Serviço Nacional de Saúde, a saúde pública e todas as organizações sociais que, na sua intervenção, reconhecem a prevalência assimétrica dos riscos de saúde, em função dos grupos sociais e das condições de vida e de trabalho que lhe são proporcionados, e promovem a solidariedade com os mais vulneráveis.
Uma parte do discurso salutogénico apoia-se na metáfora da contaminação do corpo, intensificando a suscetibilidade e aversão à degradação corporal. Os doentes, os velhos, os contaminados e os que apresentam marcas corporais de decadência física tendem a ser excluídos ou ignorados. É preciso limitar as práticas sociais prudenciais que sujeitam os corpos a um grau sem precedentes de monitorização dos riscos. As companhias de seguros, os especialistas e políticos alargarão a segurança a domínios cada vez mais vastos da vida, ampliando a política de controlo administrativo e o pensamento individualizado sobre o risco e a responsabilidade pelo seu controlo. Joga-se aqui uma nova noção de espaço público em que a figura do corpo público e do cuidado do outro se podem afirmar.
Como citar: Gomes, Rui (2020), "Corpo e riscos", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 21.11.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30090. ISBN: 978-989-8847-24-9