Ao invés da utopia, que produz um ideal de organização, felicidade e harmonia aplicado à vida coletiva, a distopia desenha um lugar imaginário onde se vive sob condições extremas de opressão, desespero e conflito. Frente à realidade objetiva, a utopia é um território de desejo e esperança, enquanto a distopia é um lugar de sofrimento e desolação, determinado por uma transformação da natureza condicionada pelas más escolhas da intervenção humana. Em Dystopia: A Natural History, Gregory Claeys confere-lhe, no entanto, uma dimensão que pode tornar-se positiva, dado revelar um conjunto de medos “naturais” (deuses, monstros, calamidades) ou “sociais” (tecnologias opressivas, exploração do trabalho ou sistemas totalitários), a partir dos quais as sociedades se confrontam com cenários que de modo algum desejaram e que deverão rejeitar.
A reflexão sobre a paisagem humana que poderá resultar da atual situação pandémica de COVID-19, a geograficamente mais vasta e das mais mortais da história, só superada pela Peste Negra e pela Gripe Pneumónica, tem visto emergir possibilidades com contornos de uma configuração distópica das sociedades próximas futuras. Aspetos como a imposição do distanciamento social, a contenção imposta nos eventos de natureza coletiva, o cadastro dos cidadãos e da sua vida privada, o controlo dos lugares de habitação, o regresso abrupto das fronteiras, a limitação da circulação humana e da presença em lugares públicos, o registo detalhado e regular das condições de saúde, a instauração da vigilância sobre as pessoas, a ampliação obrigatória do regime de teletrabalho, o controlo informático da atividade individual, a flexibilização total do desemprego, a própria limitação da liberdade de reunião e protesto, bem como a intervenção mais pesada do Estado, da lei e dos mecanismos de polícia, anunciam, em nome da indispensável segurança sanitária – como nos romances distópicos de Zamiatine, Huxley ou Orwell – uma normalidade dominada por inúmeras restrições.
O dramatismo que esta enumeração revela poderá ser moderado pela interposição da opinião pública e das forças, instituições e movimentos democráticos, assim como pelo desenvolvimento de uma consciência coletiva mais informada e colaborativa, mas a paisagem negativa que revela não pode ser encarada como o mero pesadelo que se desfará ao acordarmos. O cenário da distopia que a resposta à COVID-19 está a projetar deverá ajudar-nos a medir melhor, com uma perceção nítida e inteligente de benefícios e danos, cada um dos passos dados no sentido de uma rápida transformação das práticas e dos hábitos sociais. Na paisagem pós-pandémica, a preservação da saúde pública, a defesa dos direitos humanos e a salvaguarda da liberdade individual não podem ser inconciliáveis. O exemplo chinês, no qual a ostentada eficácia do combate à pandemia, apoiada na hipervigilância, se está a fazer em detrimento da autonomia e da liberdade dos cidadãos, não pode propagar-se. É imperativo escrutinar os contornos do “novo normal”, barrando a materialização da distopia.
Como citar: Bebiano, Rui (2020), "Combater a distopia", Palavras para lá da pandemia: cem lados de uma crise. Consultado a 21.11.2024, em https://ces.uc.pt/publicacoes/palavras-pandemia/?lang=1&id=30088. ISBN: 978-989-8847-24-9