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28-05-2024 #19

Hamilton Francisco (Babu) | A Perfeição | Técnica mista sobre tela 90 x 75 cm @Entre lugares | 2024 (cortesia do artista)

Reconstruir as masculinidades: o cuidado como meio de superação do trauma provocado por normas hegemónicas

Estudos publicados nas últimas décadas sugerem que uma parte considerável de rapazes e homens que exibem comportamentos violentos foi sujeita a diferentes formas de trauma e de violência e a experiências adversas durante a infância e/ou juventude. Algumas análises demonstram como definições rígidas e hegemónicas das masculinidades estruturam as trajetórias de vida e as subjetividades destes sujeitos, contribuindo para a reprodução de ciclos de violência. Sabe-se que masculinidades hegemónicas classificadas como tóxicas são historicamente fatores de risco e fonte de opressão e sofrimento para as mulheres.

À medida que o campo de pesquisa se ampliou, no entanto, as perspetivas expandiram-se, passando a reconhecer-se os impactos negativos que a construção social da masculinidade patriarcal tem também em homens e meninos, influenciando determinantemente a sua qualidade e esperança média de vida, assim como as das pessoas que lhes são próximas. Passou, além disso, a incluir-se componentes interseccionais, reconhecendo-se que existe uma hierarquia profundamente enraizada de privilégio masculino no referente a raça, etnia, religião, classe, nacionalidade ou orientação sexual, entre outras dimensões. É, por isso, central considerar como a construção de masculinidade(s) varia através de diferentes culturas e fronteiras geopolíticas, bem como verificar como essas diferenças se refletem nas pesquisas globais e nas políticas públicas. Há que pensar estas dimensões de forma entrecruzada, procurando refletir criticamente sobre a construção social das masculinidades no tempo e no espaço, reconhecendo as suas pressões e consequências.

Não sendo especialista da questão do trauma, reconheço a centralidade deste debate nos estudos sobre masculinidades. Nesta InfoTRAUMA, proponho uma leitura possível sobre as complexidades e expectativas culturais do trauma enquanto causa e efeito da construção de masculinidades dominantes.

As masculinidades hegemónicas são frequentemente descritas como aquelas que adotam e tentam corresponder a padrões culturais dominantes numa determinada sociedade, e que ditam atitudes e comportamentos que nela conferem privilégios com base patriarcal. Essas normas enfatizam frequentemente traços como a força, o domínio, a supressão emocional ou a sexualidade agressiva. A idealização desses traços é prejudicial para toda a sociedade. Incluindo para os próprios homens.

Os efeitos de uma tentativa de conformismo e de adaptação às normas hegemónicas têm consequências que, muitas vezes, podem ser avassaladoras. A necessidade de corresponder a expectativas de virilidade e autocontrolo pode levar, por vezes, à supressão de emoções e à negação de vulnerabilidades. Esta supressão e negação individuais resultam em distanciamentos, de si próprios e de outros/as, e em conflitos entre a autenticidade pessoal e o conformismo social, criando terrenos férteis para a emergência de traumas.

Além dos impactos individuais, as normas hegemónicas atribuídas à masculinidade e dela esperadas têm consequências coletivas significativas, sobretudo no domínio das relações interpessoais. A procura incessante do poder e do domínio leva, frequentemente, a comportamentos abusivos e violentos em relação a outros/as, perpetuando ciclos de violência e trauma tanto para os homens quanto para quem os rodeia. Simultaneamente, a rigidez da hegemonia impede o reconhecimento da dor e da vulnerabilidade próprias e, consequentemente, obsta à procura de ajuda e apoio emocional, conduzindo amiúde ao isolamento.

Uma das propostas para enfrentar eficazmente o impacto traumático das masculinidades hegemónicas, individual ou socialmente, consiste, justamente, na sua desconstrução e reconstrução, nomeadamente desafiando padrões sociais e culturais herméticos e limitadores. O cuidado, enquanto cultura e enquanto verbo de ação, tem sido proposto como a pedra basilar da reconstrução de identidades não-violentas e saudáveis, central para uma mudança da maneira como entendemos e valorizamos as masculinidades, desafiando padrões culturais restritivos e reconhecendo a diversidade de experiências e identidades masculinas. Ao oferecer um espaço seguro, o cuidado permite a expressão de vulnerabilidades e emoções que estão, frequentemente, na origem de traumas masculinos.


Tatiana Moura (Observatório Masculinidades.pt do Centro de Estudos Sociais)


Como citar este texto:
Moura, T. (2024). Reconstruir as masculinidades: o cuidado como meio de superação do trauma provocado por normas hegemónicas. InfoTRAUMA, 19.



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