O CRSCM E O OBSERVATÓRIO DO TRAUMA - Parte II

 

Conhecer e propor práticas de prevenção, tratamento e reabilitação de quadros patológicos decorrentes do impacto de fatores de stress durante a vida


Quase duas décadas após o reconhecimento da perturbação psicológica crónica resultante da exposição a fatores de stress durante a vida militar em ex-combatentes portugueses na Guerra Colonial, foi criado o Centro de Recursos de Stress em Contexto Militar (CRSCM), um projeto financiado pelo Ministério da Defesa Nacional que, em 20 de agosto de 2020, foi consagrado no Estatuto do Antigo Combatente pelo Decreto-Lei nº 46/2020.

O percurso histórico e a explicitação da justeza do conceito do CRSCM foram apresentados na edição #8 da InfoTRAUMA, destacando a sua perspetiva multidisciplinar - abrange as áreas médica, psicológica, social e político-jurídica – e a participação do Observatório do Trauma/CES desde a sua criação, em 2018.

A equipa do Observatório do Trauma propôs-se realizar uma série de atividades com o objetivo de reconhecer e validar práticas de prevenção, tratamento e reabilitação de quadros patológicos decorrentes do impacto de fatores de stress durante a vida militar. Nos primeiros três anos, as atividades foram centradas em conhecer o material produzido em Portugal, bem como as práticas clínicas de profissionais das áreas médica e psicológica que lidaram com militares expostos a vivências de guerras, quer durante o período do Serviço Militar, quer em posteriores avaliações de peritagem e/ou de intervenções terapêuticas.  Para este fim, o trabalho foi dividido em três etapas:

 

ETAPA 1 - Revisão bibliográfica

Foi feito o levantamento de artigos científicos, livros, documentos e referências audiovisuais sobre trauma de guerra, o impacto do PTSD na vida de ex-militares e de seus familiares e as principais intervenções psicossociais existentes em Portugal.

“Após a conclusão da pesquisa sistemática em bases de dados disponibilizadas online, na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, no Centro de Documentação 25 de Abril, e nos arquivos do Clube da Marinha, foi elaborada uma grelha de análise bibliográfica a qual subdividiu a informação recolhida em categorias (saúde mental; saúde física; família; agentes de stress; peritagem; processos psicossociais; programas de intervenção psicossociais; e outras fontes)” (CRSCM, 2021, p. 25).

Através do levantamento bibliográfico, que teve como objetivo conhecer a realidade portuguesa no que se refere às consequências para a saúde mental da exposição a fatores de stress durante a vida militar e, de forma mais acentuada, durante a Guerra Colonial, percebeu-se que não se encontram facilmente documentos científicos sobre a manifestação de sintomas psicopatológicos resultantes da exposição à guerra, escritos no período de 1961-1974 nem nos primeiros anos do pós-guerra. Na realidade, como mencionado na edição anterior da InfoTRAUMA, as publicações científicas portuguesas sobre o tema desenvolveram-se na década de 1990. Felizmente, a partir do reconhecimento do stress de guerra como causa legitima de atribuição do estatuto de DFA no país (2000), as publicações nessa área cresceram exponencialmente.

 

ETAPA 2 – Entrevistas com clínicos

Em conjunto com a equipa da Universidade do Minho, foi desenvolvido o estudo “Práticas da Medicina e Psiquiatria em Contexto da Guerra Colonial: Memórias do Terreno”, que inclui entrevistas com profissionais de saúde responsáveis pela avaliação clínica e de peritagem de militares e ex-militares, durante e no pós-guerra. Esta etapa teve como objetivo conhecer os sinais, sintomas e diagnósticos resultantes da experiência militar e as especificidades da prática clínica. Desde o início da pandemia da Covid19, a recolha de dados foi suspensa, dada a idade avançada e vulnerabilidade acrescida dos potenciais participantes.

As entrevistas até então realizadas apontam para uma evolução no modo de encarar e reconhecer as expressões de stress em contexto militar, bem como para constatação da necessidade de uma rede de apoio psicológico para militares, ex-militares e suas famílias. Nas últimas décadas, tem sido significativo o aumento da preocupação com a saúde mental dos militares, com estruturas de avaliação e apoio psicológico antes, durante e após as operações militares.

É evidente que continua a existir algum estigma em relação às doenças mentais, nomeadamente no contexto militar. Mas, a realidade dos militares que atuaram na Guerra Colonial não pode ser comparada aos militares que têm participado, ao longo das últimas décadas, em operações de manutenção de paz, no exterior do país. Os clínicos entrevistados que atenderam militares durante e no pós-Guerra Colonial relataram que pouco ou nada se falava em sofrimento psicológico. Já os relatos dos profissionais que trabalham com militares e ex-militares nos últimos anos, sobretudo daqueles que presenciaram a mudança de perspetiva, apontam que o trabalho de sensibilização tem apresentado resultados, com maior atenção à saúde mental por parte das hierarquias militares e da sociedade em geral. Entretanto, ainda se mostra imprescindível reforçar a atenção aos militares após as operações e oferecer-lhes serviços de apoio médico, psicológico e social, de acordo com as especificidades de cada caso.

 

ETAPA 3 - Análise dos processos clínicos e de peritagem

Por limitações inerentes ao estado de pandemia e por ausência de autorização para acesso aos arquivos necessários para a realização desta etapa, o trabalho ficou em suspenso.

A pandemia SARS-Cov-2, que tem afetado a saúde física e mental de pessoas por todo o mundo, teve impacto marcante no desenvolvimento das atividades do Observatório do Trauma no âmbito do CRSCM. Entretanto, no meio dos obstáculos impostos, 2020 foi, como já referido, o ano que o CRSCM passou a integrar a legislação referente ao Estatuto do Antigo Combatente, reconhecimento que consolida o trabalho que tem sido desenvolvido e motiva a continuidade das investigações. Mais do que isso, a oficialização do CRSCM torna possível juntar esforços para a produção de conhecimento sobre o stress pós-traumático em contexto militar, o que pode contribuir para melhorar as intervenções preventivas e os serviços de apoio médico, psicológico e social prestados aos militares, ex-militares e às suas famílias.

O Observatório do Trauma tem, no âmbito do CRSCM, como objetivo futuro, para além de concluir os trabalhos interrompidos pelas restrições impostas pela pandemia, investigar as melhores práticas clínicas e mais eficazes intervenções terapêuticas no âmbito do trauma, “alargando a pesquisa à clínica e investigação internacionais, de modo a elaborar recomendações e propostas que melhorem a abordagem do stress pós-traumático em contexto militar” (CRSCM, 2021, p. 31).

Tendo em conta o papel precursor das vivências dos militares como desencadeante da atenção à psicotraumatologia, não apenas nos campos académico e clínico, mas na sociedade civil, o Observatório do Trauma tem destacado a importância de divulgar os dados obtidos. Assim, além de contribuir para avanços científicos na área da psicotraumatologia, mantém a população geral informada e sensibilizada para os cuidados da saúde mental.

 

Outubro de 2021


Joana P. Becker

Camila Borges

Luísa Sales

 

Este texto foi originalmente publicado na InfoTRAUMA #9, em outubro de 2021

 


N - Este texto assenta em dados presentes no Relatório Final de Atividades do OT no CRSCM (março/2021), relatório elaborado pelas mesmas autoras do presente texto.
 

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